[12] Razões TRADICIONAIS para pautas PROGRESSISTAS?
Vou abrir um parêntesis aqui na série para falar de uma epifania que tive. Ela é resumida na seguinte ideia: encontrar razões TRADICIONAIS para pautas PROGRESSISTAS.
Cheguei nesse ponto pelo seguinte raciocínio: por que ficamos tão polarizados? Um dos motivos é que conservadores encontram razões conservadoras (presumivelmente, tradicionais) para serem conservadores, enquanto progressistas encontram razões progressistas para serem progressistas. Ou seja, eles não falam um a linguagem do outro.
Então, será que não teríamos razões TRADICIONAIS para sermos progressistas? Será que realmente ideias avançadas e esclarecidas foram um privilégio dos últimos séculos ou das últimas… décadas?
Neste estudo da Bíblia Hebraica/’Velho’ Testamento, uma compilação de livros de DOIS MILÊNIOS E MEIO atrás, e do Talmude, que põe por escrito discussões de DOIS MILÊNIOS ATRÁS interpretando a primeira, nós vemos que, aparentemente, há sim tais razões.
Na tradição judaica nós encontramos as seguintes ideias (algumas que já demonstramos nesta série, outras que ainda demonstrarei e citarei aqui sem fonte apelando pela vossa confiança):
Restrições severas ao procedimento para condenar alguém à pena de morte, tornando quase impossível ou raro aplicar (mesmo estando no que seria Lei de Deus). Princípio da indenização substituindo a retaliação física. A ideia de que o homem deve priorizar o prazer da mulher na relação sexual. A ideia de que um casal pode fazer o que quiser entre quatro paredes. A proibição do estupro conjugal. A proibição da tortura física para obrigar alguém a confessar um crime. A desnecessidade de ambições imperialistas (cada povo teve sua porção de terra dada, e Israel só reivindicaria no máximo uma bem pequena — reivindicação esta não feita durante mais de 1 milênio e meio). Aborto tratado não como questão criminal, mas no máximo de indenização caso uma grávida o sofra por causa de ato de outra pessoa. Nada que chegue perto da guerra às drogas e de proibir drogas. AUSÊNCIA de ênfase em questões como gays, aborto e contraceptivos. A própria suposta proibição bíblica contra a homossexualidade interpretada em termos restritivos: apenas o sexo anal masculino estaria proibido, não outros atos (algo pronto para ‘cair’ com o tempo). A condenação à morte de dois homens que praticassem sexo anal tornada impossível de aplicar e letra morta (mesmo estando no que seria Lei de Deus). Nada de guerras santas, as únicas que teriam esse status ficaram na antiguidade lendária e foram consideradas restritas ao campo do mito de origem. Nenhuma tentativa de impor a religião judaica sobre não judeus. Ênfase não em pecados íntimos, mas em maldades públicas: opressão contra os necessitados, roubo, violência, crueldade, sacrifícios humanos… Limites a abusos econômicos. Benefícios aos necessitados como questão de justiça, não apenas de caridade voluntária. Razões para a monogamia? Sim. Mas será que haveria para o poliamor? Bem, também dá pra desenvolver a partir dos exemplos de poligamia. Possibilidade de divórcio? Sim. Proibição para o sexo antes do casamento? Não tão claro quanto pensam. Banimento da prostituição? Também menos claro do que parece. Capaz de admitir reformas e emendas a essa Lei DIVINA? Também ocorreu e foi feito quando necessário (em certa ocasião expandindo os direitos de propriedade das mulheres).
Longe de mim dizer que essa tradição é 100% moderna (nem teria como). MAS tem muitas razões tradicionais para ser progressista, e muitos conservadores na verdade são anti-tradicionais em relação a um contexto autenticamente mais tradicional que de alguma forma faz parte de sua herança cultural (pois o ocidente cristão herdou o ‘Velho’ Testamento, e também poderíamos entrar no fato de Jesus ser judeu….).
Mas além de uma crítica aos conservadores que encontro nesse ponto, também me vejo numa crítica aos progressistas. O progressismo foi longe demais ao abandonar e por vezes ridicularizar tradições religiosas. Subestimou a INTELIGÊNCIA da FÉ. E especialmente seu PODER.
E o que explica uma radicalização da religião concomitante a um aumento da ausência de religião? TALVEZ estejam ligados. Peguemos aquele resultado empírico de que as pessoas não religiosas (atéias e céticas) tendem a ter maior inteligência. E que pessoas mais progressistas também tendem a ter maior inteligência. Mas no passado ninguém era ateu (não abertamente) e não existia um progressismo político formal. Então raciocinemos:
Números HIPOTÉTICOS: Supondo que no ano 500 o 20% da população composto pelas pessoas mais inteligentes estivesse em 18% na religião (apenas 2% fora dela), mas que no ano 2020 o 20% da população composto pelas pessoas mais inteligente estivesse em apenas 2% na religião (logo 18% fora dela), fica claro que o aumento de pessoas mais inteligentes para fora da religião significa uma redução de pessoas mais inteligentes dentro da religião, retirando da religião uma ferramenta que ela tinha para se reformar no passado. O mesmo raciocínio podemos fazer com os hipotéticos 20% da população composto pelas pessoas mais progressistas, que antes também estariam grandemente dentro da religião ainda, enquanto a situação hoje é inversa.
Agora, uma coisa curiosa é que o Brasil teve uma escolha quanto a isso nas últimas duas eleições. O programa de 2014 da candidata Marina, evangélica, tinha: união civil homossexual (apenas a palavra ‘casamento’ retirada), direitos de adoção homossexual, Lei João Nery para identidade de gênero. O programa mais LGBT-friendly entre os candidatos que à época tinham mais chance de ganhar,e um dos mais overall. E: mulher, classe trabalhadora, nortista/amazônida, ascendência indígena (e atuante dos direitos indígenas). Poderíamos ter tido um governo LGBT-friendly de uma evangélica. Mas acabamos em 2018 com Bolsonaro,usando e abusando da linguagem bíblica para uma agenda reacionária e agora simplesmente insana….