[129] A Poesia da Criação em 7 Dias
Um dos aspectos que tornam mais claro como os capítulos iniciais do Gênesis têm um aspecto muito mais poético do que descritivo é a narrativa da criação do mundo em 7 dias.
Algumas pessoas insistem que tal narrativa precisa ser lida literalmente, de tal modo a se adotar um ‘criacionismo da terra jovem’ como uma teoria para explicar a origem e desenvolvimento do nosso planeta (e da vida nele) que seja concorrente com aquelas explicações fornecidas pela astronomia (formação do sistema solar), geologia (extensas eras geológicas), paleontologia (registro fóssil) e biologia evolutiva (evolução das espécies por seleção natural e outros mecanismos evolutivos).
Assim, para que a pessoa pudesse tirar algum valor do relato bíblico, ela teria de ir contra todas as evidências da astronomia, geologia, paleontologia e biologia evolutiva para assumir que o nosso planeta foi criado em 1 semana há alguns milhares de anos.
Essa postura que insiste em ler Gênesis 1 literalmente é conhecida como ‘literalista’. Mas como o leitor do meu blog já deve saber de textos anteriores, os ‘literalistas’ são craques em fazer uma leitura literal que simplesmente NÃO é literal. Mesmo no caso de Gênesis 1 não é diferente.
Um primeiro motivo é que a maioria dos literalistas não assume o tipo de cosmologia pressuposta em Gênesis 1, então, eles seletivamente escolhem o que é para ser tomado literalmente.
Para entender isso, olhe para o céu azul durante o dia. Para os antigos israelitas (e outras populações do Oriente Próximo), a cor azul do céu era explicada por ter água lá em cima.
Note que isso é bem lógico como uma explicação para o que vemos, se você não tiver outros dados a respeito: se você estiver numa praia durante o dia, e olhar para o horizonte, parece que o azul do mar e o azul do céu se conectam. Uma conclusão fácil é que tem águas baixo e águas acima, separadas por algum tipo de película transparente cobrindo a atmosfera terrestre. E é exatamente assim que o relato bíblico imagina o que aconteceu no 2º dia da Criação:
“E disse Deus: Haja um firmamento no meio das águas, e haja separação entre águas e águas.
E fez Deus a expansão, e fez separação entre as águas que estavam debaixo do firmamento e as águas que estavam acima do firmamento; e assim foi.
E chamou Deus ao firmamento Céus, e foi a tarde e a manhã, o dia segundo.” (Gênesis 1:6–8)
Mais tarde no livro do Gênesis, durante a narrativa do dilúvio, essa separação é basicamente desfeita, de tal modo que o relato do dilúvio, mais do que a descrição de uma inundação gigante, descreve uma recriação do mundo em termos dessa cosmologia antiga:
“No ano seiscentos da vida de Noé, no mês segundo, aos dezessete dias do mês, naquele mesmo dia se romperam todas as fontes do grande abismo, e as janelas dos céus se abriram, e houve chuva sobre a terra quarenta dias e quarenta noites.” (Gênesis 7:11,12)
Agora compare como era antes do 2º dia da Criação:
“No princípio criou Deus o céu e a terra. E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas.” (Gênesis 1:1,2)
Então o dilúvio é uma reversão a esse estado original pré-criação por fazer de novo as águas cobrirem o planeta, água esta vinda de duas fontes: 1) o abismo primordial subterrâneo; 2) as águas acima do firmamento, que estão em cima da atmosfera terrestre. Como uma película transparente impede que essas águas ‘dos Céus’ caiam em cima da terra, na época do dilúvio foi como se ‘janelas’ fossem abertas nessa película deixando a água cair.
O próprio hebraico dá a dica. No hebraico, não está escrito que Deus chamou o firmamento acima do qual há águas de Céus. O que está escrito é que Deus chamou o firmamento acima do qual há mayiim (מַ֖יִם) de shamayiim (שָׁמָ֑יִם).
Ou seja, o relato de Gênesis 1 não emprega nenhuma ‘revelação’ de uma descrição científica para a origem do mundo, mas simplesmente utiliza-se de ‘fenomenologia’, como o mundo se parece aos nossos sentidos, para fazer uma elaboração poética a respeito de como Deus organizou tudo.
E é quando vemos dessa forma que as coisas realmente ficam interessantes. Uma coisa que pouca gente percebe (mesmo gente que leu milhões de vezes Gênesis 1) é que o relato em questão está escrito sob um paralelismo poético.
Os 3 primeiros dias da Criação e os 3 últimos dias da Criação (não contando o 7º dia) são espelhados tematicamente. Da seguinte forma:
1º dia e 4º dia: luz (e o tempo).
2º dia e 5º dia: águas e ar (atmosfera).
3º dia e 6º dia: terra seca.
No 1º dia, a escuridão já existe como um dado (pré-dia 1), e Deus cria a Luz para separar entre dia e noite (assim também criando a primeira alternância temporal). Já no 4º dia, Deus cria astros celestiais (“luzeiros”) para o dia e para a noite. Para o dia, o Sol. Para a noite, a Lua e as estrelas. E esses astros permitem contar o tempo de formas mais complexa (mês lunar, estações do ano, etc.).
No 2º dia, as águas cobrindo uma Terra sem forma e vazia já existiam como um dado (pré-dia 1), e Deus cria um firmamento para separar as águas entre aquelas que ficarão na Terra e aquelas que ficarão nos Céus, de tal modo que se cria um espaço áereo respirável (ar, ou atmosfera). Já no 5º dia, Deus cria os seres vivos da água (isto é, que moram nos mares e rios) e os seres vivos do ar (isto é, os que voam).
No 3º dia, que havia algo ‘terrenoso’ coberto pelas águas que ficaram abaixo do firmamento já existia como um dado (pré-dia 1), e Deus cria terra seca por elevar o material prévio acima do nível do mar, também fazendo brotar a vegetação. Já no 6º dia, Deus cria os animais da terra seca (isto é, que andam pela terra), incluindo aqui o ser humano entre esses mesmos seres vivos.
O paralelismo se fecha ao compararmos o pré-dia 1 (“dia” 0) e o dia 7, cujo paralelismo se faz pelo contraste em torno do mesmo tema. O pré-dia 1 apresenta o estado original caótico do universo, que exige que Deus trabalhe, enquanto o dia 7 apresenta o estado finalmente ordenado do universo, que é quando Deus descansa (e com isso santifica o 7º dia, o dia do Shabat, o santo sábado).
Note que eu reluto em chamar o período prévio ao dia 1 de “dia” 0 (apenas o fazendo por colocar a palavra “dia” entre aspas), porque a ideia em Gênesis 1 é que antes do dia 1 simplesmente não fazia sentido falar em “dia”, seja o dia de 24 horas, seja o dia como a parte clara das 24 horas diárias. É antes do tempo, de certa forma.
A POESIA da Criação em 7 dias estabelece um CRESCENDO de ordem e organização a partir de um estado menos ordenado para um estado mais ordenado, que segue um raciocínio bem claro.
“Antes” do 1º dia, já existiam algumas coisas: a escuridão absoluta do abismo, com água cobrindo o inteiro espaço sem forma e vazio em uma existência “fora do tempo”.
Aí Deus progressivamente vai dando forma a esse material, em duas levas: nos primeiros 3 dias, a luz e o tempo (1), o mar e o céu, e entre eles a atmosfera respirável (2), a terra seca e a vegetação (3); nos próximos 3 dias, os astros celestiais que fornecem luz e tempos (4), os animais marítimos/da água e voadores/do ar (5), os animais terrestres (6).
Quando chega no 7º dia, tudo agora está formado, ordenado, cheio de vida e de luz, cheio de astros celestiais, cheio de tempo (dia, ano, mês). Com isso Deus pode descansar. Do seu descanso deriva a última forma de contar o tempo (a semana), com 6 dias de trabalho sendo seguidos de um 7º dia de descanso. O que começou num “antes do tempo” (pré-dia 1) termina com o tempo completado (dia 7).
E essa criação vai continuar, mas agora tendo Deus um parceiro nessa obra, o ser humano. Daí o Gênesis continuará mostrando as várias coisas que o ser humano criou por iniciativa própria, seja bom ou ruim (de início informando explicitamente o momento em que os seres humanos teriam criado algo, mas depois de um tempo simplesmente pressupondo algo como já criado pelo ser humano):
- nomes das espécies dos demais seres vivos (Gênesis 2:19–20);
- vínculo conjugal (Gênesis 2:23–24);
- vestuário (Gênesis 3:7);
- nomes próprios para cada pessoa (Gênesis 3:20);
- pastoreio e agricultura (Gênesis 4:2);
- oferendas vegetais e animais como forma de culto (Gênesis 4:3–4);
- vida urbana (Gênesis 4:17);
- pastoreio nômade (Gênesis 4:20);
- música e instrumentos musicais (Gênesis 4:21);
- metalurgia (Gênesis 4:22);
- distinções de nobreza/riqueza (Gênesis 6:1–2);
- guerra (Gênesis 6:4);
- fermentação alcoólica (Gênesis 9:20–21);
- trabalho para outrem/servidão como punição para crimes/ilícitos (Gênesis 9:25–27);
- repartição territorial entre diferentes povos (Gênesis 10:5);
- reinos (Gênesis 10:8–12);
- construção civil verticalizada (Gênesis 11:3–4);
- trabalho para outrem/servidão por aquisição ou clientelagem (Gênesis 12:5);
- harém real (Gênesis 12:14–15);
- dinheiro baseado em metais preciosos (Gênesis 13:2);
- herança patrimonial, seja para filhos biológicos, seja para trabalhadores/servos do mesmo bando tribal (Gênesis 15:3);
- concubinato civil (Gênesis 16:2–4);
- servidão/escravidão por aquisição monetária (Gênesis 17:27);
- transporte animal (Gênesis 22:3).
- propriedade privada da terra e sua venda (Gênesis 23:12–20);
- direitos de primogenitura (Gênesis 25:29–34);
- trabalho assalariado (Gênesis 29:15);
- costumes locais sobre casamentos (Gênesis 29:20–27).
A Torá é dada bem mais tarde, já depois da libertação do povo judeu no Egito (narrada no livro seguinte ao do Gênesis, o livro do Êxodo). As várias regras e preceitos da Aliança entre Deus e Israel já pressupõem várias dessas criações de iniciativa humana (novamente: sejam boas ou más) tentando agora regulamentá-las de uma maneira que permita construir uma nova sociedade israelita na terra prometida sob firmes fundamentos de justiça. E que permitirá a Deus morar novamente com os seres humanos na terra (como era o objetivo original no Jardim do Éden), mas dessa vez dentro de um santuário com santificação o suficiente para receber a santíssima presença divina.
Por isso que nas primeiras palavras da Aliança, os Dez Mandamentos, proferidos diretamente por Deus ao povo judeu, se recorda a Poesia da Criação em 7 dias:
“Lembra-te do dia do sábado, para o santificar. Seis dias trabalharás, e farás toda a tua obra. Mas o sétimo dia é o sábado do Senhor teu Deus; não farás nenhuma obra, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o teu estrangeiro, que está dentro das tuas portas. Porque em seis dias fez o Senhor os céus e a terra, o mar e tudo que neles há, e ao sétimo dia descansou; portanto abençoou o Senhor o dia do sábado, e o santificou.” (Êxodo 20:8–11)
No início, Deus deu ordem ao Universo, mas deixou os detalhes da vida social humana para os próprios seres humanos, que deram origem a um sem-número de diferentes sociedades. Agora, Deus dará ordem à sociedade israelita, formando um povo para si e assim novamente vindo a habitar entre a humanidade. Contudo, isso não é o fim da participação humana, ao contrário! Pois a Torá é uma jurisprudência (e uma interpretação da existência) que precisa ser desenvolvida com base em raciocínio humano, e foi isso que o povo judeu fez exaustivamente ao longo dos milênios (veja posts [52]-[107]-[110]-[111] para entender os fundamentos dessa prática).
Agora, retornando a Gênesis 1, o emprego de paralelismo poético no relato da Criação em 7 Dias mostra que ele é produto de um raciocínio proposital. Existem diferentes formas de organizar a ordem crescente. Por exemplo, uma ordem alternativa seria fazer Deus criar tudo de um mesmo “tema” em dias seguidos. Nesse caso ficaria assim:
1º dia: Deus cria a Luz e o Tempo.
2º dia: Deus cria os astros e os tempos que esses astros demarcam;
3º dia: Deus separa as águas do mar das águas dos céus, gerando uma atmosfera respirável;
4º dia: Deus cria os animais marítimos e os animais voadores;
5º dia: Deus cria a terra seca, por elevar áreas ‘terrenosas’ submersas acima do nível do mar, com a vegetação;
6º dia: Deus cria os seres vivos terrestres, incluindo humanos.
O problema dessa ordem é que, se os animais voadores fossem criados no 4º dia, eles não teriam onde dormir porque não haveria ainda “vegetação” (p. ex. árvores) ou “terra seca” (p. ex. montanhas) para que os animais voadores pudessem descansar.
Já a ordem que encontramos no relato bíblico não teria nenhum desses problemas. Pelo contrário, os primeiros 3 dias servem para construir as várias moradas para os seres (astronômicos e animais) que serão criados nos próximos 3 dias. Em cada uma dessas moradas, tais seres encontrarão seu descanso. E quando todos assim tiverem sua casa, Deus finalmente terá a sua Casa (isto é, o mundo criado) e poderá descansar (7º dia).
Por fim, dentro do calendário judaico, estamos no ano 5.781. O calendário judaico começa a contar desde a data tradicional atribuída para a Criação do Mundo conforme Gênesis 1. Nada impede que continuemos a usar o calendário judaico mesmo sabendo que, cientificamente falando, o mundo não foi criado a 5.781 anos atrás*. Calendários são produtos culturais que refletem a maneira como certo povo concebe a passagem do tempo em conjunto aos fenômenos naturais que marcam referida passagem.
Assim, no caso judaico, podemos refletir em como o calendário judaico corrobora o que eu falei a respeito do relato de Gênesis 1: ali vemos o próprio “tempo” nascer, e o Calendário Judaico com sua ordenação dos tempos tenta capturar a ideia de que, antes, não havia tempo algum.
E isso se conecta ao fato de que, na Bíblia Hebraica, encontramos a MAIS ANTIGA PROSA HISTÓRICA CONHECIDA**: Israel vive “na história”, em um tempo histórico (não um tempo mitológico), que teve um início e desde então “flui” continuamente, com sucessivas gerações sucedendo umas às outras, mas unidas por uma história compartilhada com o seu Deus, que também está no mesmo fluxo temporal contínuo. Assim, também vive Deus “na história”…
* Na própria tradição judaica clássica e especialmente medieval judaica já se discutia a não-literalidade dos 7 Dias da Criação, inclusive dentro da Kaballah existe a ideia da idade do mundo ser contada na faixa de milhões e bilhões de anos. Abordarei esse ponto em outro texto para o blog.
** Friedman (2017, nota 60 ao cap. 3) lista essas que são as mais antigas prosas históricas conhecidas da humanidade inteira, todas elas dentro da Bíblia Hebraica: a história da Corte de Davi (2Samuel), as fontes Samuel A e Samuel B de 1Samuel, 3 das 4 fontes da Torá sob a hipótese documentária (Javista, Eloísta, Sacerdotal), duas fontes de prosa no livro de Juízes, uma história dos reis de Judá de Salomão a Ezequias (em Reis, com partes em Crônicas posterior), e uma história dos reis de Israel (em Reis), todos já compostos ou em composição por volta de 700 AEC. Anterior a tais escritos bíblicos, o que temos de mais antigo é apenas poesia histórica.
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