[15] Determinem um local fora do acampamento para evacuar
Uma interessante (e extrema) ilustração do que temos dito até agora sobre como o judaísmo vê a conexão com Deus por meio de assuntos muito mundanos é dada pela seguinte passagem da Torá.
“Determinem um local fora do acampamento onde se possa evacuar. Como parte do seu equipamento, tenham algo com que cavar, e quando evacuarem, façam um buraco e cubram as fezes.” (Deuteronômio 23:12,13)
Este trecho traz duas mitzvot que seriam aplicáveis a situações de guerra, onde os soldados estão vivendo em acampamentos militares.
A primeira, que o R. Maimônides (Rambam/Moses ben Maimon, um dos mais conhecidos filósofos judaicos da Idade Média) aponta como sendo a 192ª mistvá positiva, determina a higiene no acampamento militar, pela escolha de um local fora dele para ‘ir ao banheiro’. A segunda, que R. Maimônides aponta como a 193ª mitsvá positiva, é que cada soldado deve ter consigo um instrumento para cavar um buraco na área designada, e assim cubra suas fezes não as deixando visíveis no solo.
Esses ‘mandamentos’ podem soar estranhos, porque eles são muito mundanos e lidam com um assunto que parece totalmente desconectado da religião e do sentido da vida (o sistema excretor humano). Mas o que a Torá aqui nos diz é que por meio desses atos de higiene numa aglomeração militar a pessoa se aproxima de Deus e inclusive atrai para si uma recompensa divina!
É um exemplo extremo de como a Bíblia Hebraica encontra Deus em nossas ações dentro deste mundo aqui, em toda a sua materialidade, em coisas cotidianas e até banais que fogem do que comumente pensaríamos como ‘espiritualidade’.
Na concepção judaica Deus dar essas mitzvot é como um presente pros soldados em guerra, uma maneira que Deus dá pra esses soldados se conectarem a ele por meio de um ato muito fácil de fazer.
Isso também ajuda a entender como a visão cristã sobre a Lei Judaica acaba descontextualizando o mérito da questão. Pois vejam: muitos cristãos consideram que o objetivo da Lei era mostrar a condenação eterna do ser humano, pois a violação de qualquer um de seus mandamentos, por mais mínimo que fosse, obrigaria Deus a condenar eternamente o ser humano (e aí seria necessária a morte de Jesus para resgatá-lo disso). Mas será que Deus condenaria alguém ao inferno eterno ou à morte eterna por ter evacuado dentro do acampamento apenas 1 única vez em toda a sua vida?
Ao contrário, esse exemplo deixa claro que o objetivo da Lei e suas mitzvot é tanto o de construir uma sociedade melhor (neste caso, higienicamente melhor), como de santificar o cotidiano (neste caso, tornando um ato completamente banal de higiene em um ato consagrado ao divino).
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