[18] Profetismo clássico como chave interpretativa das Escrituras
Como falei no post anterior, temos três categorias de textos bíblicos em relação à sua proximidade ou não dos contextos originais que pretendem retratar. Na primeira categoria, temos os livros autorais em um sentido forte (ou quase isso).
Esses livros são aqueles que fazem parte do profetismo clássico israelita. São eles: Isaías, Jeremias, Ezequiel, Oséias, Amós, Miquéias, Joel, Obadias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias. (Jonas é uma exceção, faz parte do profetismo clássico e deve ser lido nesse contexto, mas sua ‘forma’ é a dos livros que contam a história de um indivíduo selecionado)
Note que esses livros todos tem o nome de um profeta, e eles põem por escrito as mensagens proféticas de seus autores. Todos esses livros tem um núcleo escrito pelo próprio profeta original, que recebe algumas adições por discípulos do profeta após a morte dele. (Uma exceção é o caso de Isaías, que na verdade tem pelo menos 2 profetas Isaías dentro do livro, e uma proposta similar é feita para Zacarias)
Eles são a MELHOR FONTE HISTÓRICA da Bíblia Hebraica. Por meio deles, você consegue saber DIRETAMENTE qual era o pensamento e atividades dessas pessoas que atuaram aproximadamente entre 750 AEC (antes da Era Comum) e 515 AEC, isto é, cerca de 2.770 anos atrás a 2.535 anos atrás muito bem preservados. (A terminologia ‘antes da Era Comum’ e ‘na Era Comum’ é mais adequada no contexto interreligioso que a ‘antes de Cristo’ e ‘depois de Cristo’, mas designam exatamente os mesmos anos)
E uma coisa muito interessante deles é que nessas origens do que viria a ser a religião judaica organizada o principal mote da mensagem profética era a queixa contra a INJUSTIÇA SOCIAL em uma sociedade antiga. Os profetas falavam principalmente contra a maneira que a elite governante oprimia os fracos, os necessitados, etc.
A mensagem dos profetas era que Deus exigia justiça acima de tudo e tinha uma predileção pelos fracos e oprimidos. Ele é um Deus ‘salvador’, salvação esta não num sentido espiritual nem pós-morte, mas relativo a condições de opressão e injustiça nesta vida aqui. E por isso Ele também é um Deus que ‘julga’. É por trazer ruína e castigo ao opressor que os injustiçados são libertados de sua opressão.
O que Deus mais deseja? Que as pessoas façam o bem às outras e promovam a justiça na comunidade. Ele prefere a prática da justiça e do bem em relação à mera religiosidade (como na prática de sacrifícios, festas religiosas e jejuns).
E Deus é tão sério sobre a injustiça que Ele está disposto ao IMPENSÁVEL: uma espécie de AUTO-CASTIGO por destruir seu próprio Templo onde habita entre seu povo, e permitir que seu povo seja derrotado e levado embora para um exílio (o que também significa a derrota e o exílio do próprio Deus).
A essa concepção sobre o valor fundamental da justiça se associava a ideia de que apenas um Deus único (sob o nome YHWH) deveria ser seguido pelas pessoas desta sociedade específica (o povo de Israel/Judá), por conta de tradições antigas relativas a uma aliança entre o ‘verdadeiro’ Deus YHWH e este povo.
Mais do que uma aliança, um relacionamento erótico. Este povo ‘conheceu’ a YHWH. Esse ‘conhecer’ aqui tendo uma conotação erótica, no qual YHWH casa com Israel e tem relações ‘íntimas’ com Israel. Mas como a palavra ‘casamento’ hoje soa como algo frio e padrão, vamos reelaborar assim:
Deus SE APAIXONA pelo povo de Israel quando este era uma jovem moça ainda, e começa a NAMORAR COM MUITO ARDOR essa jovem. Mas com o passar do tempo essa namorada vai esquecendo o primeiro amor e várias vezes TRAI seu namorado (Deus) com vários AMANTES (outros deuses). Ainda assim, por estar apaixonado, Deus nunca a abandona e perdoa de novo e de novo mesmo SOFRENDO com as traições. Mas sua paciência começa a se esgotar, Deus está profundamente irritado com sua namorada e no auge dessa ira jura que NUNCA MAIS VOLTARÁ com ela… Mas um dia essa irritação passará e a traição novamente será perdoada, REATANDO O NAMORO como se fosse a primeira vez que se ‘conheceram’.
Um ponto importante é que, para os profetas, YHWH não exigia essa exclusividade de adoração a Ele pelos outros povos. De Israel sim pois Israel o ‘conhecera’. Não obstante, esse Deus é ainda assim um Deus das nações no sentido de que também as julga pelas injustiças que praticam e liberta os povos oprimidos de sua opressão ao longo da história do mundo.
É essa concepção que vai permear todo o resto da Bíblia Hebraica, seja aqueles livros que vão usar e expandir as tradições mais antigas que esses profetas usaram, seja aqueles livros que já vão pressupor os próprios profetas e usá-los como fontes. É fundamental tê-la em mente ao ler o ‘Velho’ Testamento.
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