[188] Deus NÃO ordenou genocídios — Parte 2: Cananeus
No texto anterior comecei a desfazer o mal entendido de que Deus teria ordenado extermínios (genocídios) de populações inteiras incluindo mulheres e crianças no “Velho” Testamento (como é vulgarmente conhecida a Bíblia Hebraica).
Como ficou claro naquela introdução, temos de desmembrar aqui em duas discussões distintas: a dos trechos relativos aos cananeus e a dos trechos relativos aos amalequitas.
No presente texto tratarei dos cananeus e no próximo abordarei o caso dos amalequitas.
Quem eram os cananeus? Segundo a narrativa da Torá (os primeiros cinco livros da Bíblia Hebraica: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio), haviam sete nações que habitavam a terra prometida que Deus prometera aos israelitas. Os nomes delas eram: caananeus, heteus, girgaseus, amorreus, perizeus, heveus e jebuseus. Acabamos por chamar num sentido lato todas de “cananeus” para simplificar (pois habitavam a terra de Canaã).
“Naquele mesmo dia fez o Senhor uma aliança com Abrão, dizendo: tua descendência tenho dado esta terra, desde o rio do Egito até ao grande rio Eufrates;
E o queneu, e o quenezeu, e o cadmoneu,
E o heteu, e o perizeu, e os refains,
E o amorreu, e o cananeu, e o girgaseu, e o jebuseu.” (Gênesis 15:18–21)
“[Deus falando na Sarça Ardente com Moisés:] Portanto eu disse: Far-vos-ei subir da aflição do Egito à terra do cananeu, do heteu, do amorreu, do perizeu, do heveu e do jebuseu, a uma terra que mana leite e mel.” (Êxodo 3:17)
Nos quatro primeiros livros bíblicos, é deixado claro que, para que os israelitas herdem a terra prometida, eles precisarão derrotar e expulsar os cananeus dali, mas a autorização para promover tal guerra só seria dada quando a injustiça e iniquidade dos cananeus chegasse a um nível bem elevado e contínuo ao longo de séculos:
“Então [Deus] disse a Abrão: Saibas, de certo, que peregrina será a tua descendência em terra alheia, e será reduzida à escravidão, e será afligida por quatrocentos anos,
Mas também eu julgarei a nação, à qual ela tem de servir, e depois sairá com grande riqueza.
E tu irás a teus pais em paz; em boa velhice serás sepultado.
E a quarta geração tornará para cá [a terra prometida]; porque a medida da injustiça dos amorreus não está ainda cheia.” (Gênesis 15:13–16)
“[Então disse (wayomer) o Senhor a Moisés:] Mas se diligentemente ouvires a sua voz, e fizeres tudo o que eu disser, então serei inimigo dos teus inimigos, e adversário dos teus adversários.
Porque o meu anjo irá adiante de ti, e te levará aos amorreus, e aos heteus, e aos perizeus, e aos cananeus, heveus e jebuseus; e eu os destruirei.
Não te inclinarás diante dos seus deuses, nem os servirás, nem farás conforme às suas obras; antes os destruirás totalmente, e quebrarás de todo as suas estátuas.” (Êxodo 23:22–24)
Aqui não existe nenhuma implicação de que os cananeus deveriam ser exterminados fisicamente em sua totalidade, apenas que Deus ajudaria os israelitas a derrotarem tais nações, desde que a injustiça delas já tivesse chegado a um patamar elevado. Um ponto importante dessa expulsão dos cananeus envolveria não se associar à idolatria que eles praticavam (e, por extensão, não se associar às práticas injustas que vigorassem ali). Então, o objetivo da expulsão dos cananeus era estabelecer uma nova sociedade na terra prometida, uma sociedade que se pautaria pela justiça sob o pacto com um único Deus.
Deve-se destacar ainda que as histórias dos Patriarcas e Matriarcas no livro de Gênesis, antes mesmo da nação israelita surgir, já apontam essa problemática da iniquidade dos cananeus. As relações dos Patriarcas bíblicos com os cananeus são marcadas por problemas, o caso mais notável sendo a iniquidade dos habitantes de Sodoma e Gomorra (que acaba sendo destruída por um evento natural na época de Abraão ainda). Por outro lado, os Patriarcas ainda conseguiram estabelecer relações amigáveis com parte dos cananeus, o que demonstrava que a medida da injustiça deles não havia passado de todos os limites. Ainda mais curiosamente, Abraão chega a socorrer os habitantes de Sodoma no contexto de uma guerra que afligiu a região, e depois tentou argumentar com Deus para poupar Sodoma, mesmo que a injustiça de Sodoma fosse alta.
O que significa mais concretamente essa injustiça dos cananeus? Aqui é importante prestar atenção ao contexto sociopolítico implicado por essas narrativas da Torá. Os cananeus nada mais eram do que as cidade-Estado que governavam a terra de Canaã. Os hebreus (entre os quais se incluíam os patriarcas e matriarcas bíblicos, e o próprio povo israelita posterior) eram uma população à margem dessa sociedade estatizada e hierarquizada. A evidência literária e arqueológica mostra que a etnogênese dos israelitas se deu por contraste aos cananeus e posteriormente aos filisteus: enquanto cananeus e filisteus preconizavam uma ordem social hierarquizada, os israelitas desenvolveram um ethos alternativo muito mais igualitário. Assim, a diferença entre cananeus e israelitas era mais de ordem sociopolítica do que étnica.
É por isso que a Torá fala tanto na assistência e na justiça a ser feita para com o pobre, o órfão, a viúva, o estrangeiro, e assim por diante. Aqueles que, para os mais antigos israelitas, as cidades-Estados cananéias maltratavam persistentemente.
Uma coisa que sabemos hoje também (mas que o texto bíblico apenas sutilmente sugere ao colocar Canaã como povo irmão do Egito) é que o sistema de cidades-Estados caananéias era coligado ao governo do Egito. Portanto, a mesma estrutura hierarquizada que veio a oprimir os hebreus no Egito (conforme a história do Êxodo) operava em Canaã para oprimir os hebreus que ali estivessem. A própria região em Gênesis 40:15 é chamada de terra dos hebreus, denotando uma coexistência entre cananeus e hebreus, só que os cananeus estiveram por cima com suas cidades-Estado enquanto os hebreus estiveram principalmente nas margens da sociedade.
(Note que no sentido bíblico, ‘hebreu’ não designa apenas os israelitas, mas todos os filhos de Éber e, em especial, os descendentes de Abraão e Ló, como os moabitas, amonitas, edomitas, midianitas etc. muitos dos quais permaneceram nas redondezas daquela terra conforme o próprio relato bíblico)
Então, para os 4 primeiros livros da Torá, a derrota dos cananeus significava a sua expulsão da terra prometida, a qual estavam ocupando e governando de forma ilegítima, o que chegou no seu ápice depois que Moisés tirou o povo de Israel do Egito.
Uma coisa curiosa aqui também é que, dentro desses 4 primeiros livros, existe a noção de que os cananeus acabariam por servir os israelitas, o que por implicação significa que eles não seriam exterminados!
“E despertou Noé do seu vinho, e soube o que seu filho menor [Cam, pai de Canaã] lhe fizera.
E disse: Maldito seja Canaã; servo dos servos seja aos seus irmãos.
E disse: Bendito seja o Senhor Deus de Sem [de quem viriam os hebreus]; e seja-lhe Canaã por servo.
Alargue Deus a Jafé, e habite nas tendas de Sem; e seja-lhe Canaã por servo.” (Gênesis 9:24–27)
E como já dissemos, isso só aconteceria após os próprios israelitas terem servido aos egípcios (aliados dos cananeus) e seus ancestrais tivessem passado por perrengues entre os cananeus, algo que acontecerá também novamente depois do estabelecimento dos israelitas na terra prometida, como relatado mais para frente no livro dos Juízes (ao qual voltarei mais tarde).
Essa visão acaba mudando em parte no livro de Deuteronômio. Esse livro difere dos demais livros da Torá. Nos livros anteriores, às vezes vemos Deus aparecer falando na narrativa, ou que Moisés fala “assim diz o Senhor” parecendo estar citando algo que Deus dissera previamente (na verdade é mais complexo que isso, mas por enquanto não vamos nos preocupar com isso). Já no livro de Deuteronômio, Moisés aparece fazendo discursos na primeira pessoa.
Portanto, o livro de Deuteronômio nunca representa a voz divina seja direta ou indiretamente, mas representa a voz de Moisés interpretando o que seriam as demandas da aliança para os israelitas. Alguns sábios da tradição judaica oral milenar chegaram a dizer que aqui vemos o início da Torá Oral (já por escrito!), o processo dos sábios elaborarem e refletirem sobre as normas da Torá já postas, inferindo suas próprias conclusões acerca de sua aplicação. (Sobre o tratamento dos sábios a respeito da distintividade do livro do Deuteronômio, uma brilhante revisão é feita por R. Abraham Joschua Heschel em “The Heavenly Torah: as refracted through the Generations”)
É aqui que veremos pela primeira vez aparecer uma diferença entre guerras contra um povo qualquer versus a guerra a ser travada contra os cananeus por ocasião da entrada na terra prometida:
“Quando te achegares a alguma cidade para combatê-la, apregoar-lhe-ás a paz.
E será que, se te responder em paz, e te abrir as portas, todo o povo que se achar nela te será tributário e te servirá.
Porém, se ela não fizer paz contigo, mas antes te fizer guerra, então a sitiarás.
E o Senhor teu Deus a dará na tua mão; e todo o homem que houver nela passarás ao fio da espada.
Porém, as mulheres, e as crianças, e os animais; e tudo o que houver na cidade, todo o seu despojo, tomarás para ti; e comerás o despojo dos teus inimigos, que te deu o Senhor teu Deus.
Assim farás a todas as cidades que estiverem mui longe de ti, que não forem das cidades destas nações.
Porém, das cidades destas nações, que o Senhor teu Deus te dá em herança, nenhuma coisa que tem fôlego deixarás com vida.
Antes destruí-las-ás totalmente: aos heteus, e aos amorreus, e aos cananeus, e aos perizeus, e aos heveus, e aos jebuseus, como te ordenou o Senhor teu Deus.
Para que não vos ensinem a fazer conforme a todas as suas abominações, que fizeram a seus deuses, e pequeis contra o Senhor vosso Deus.” (Deuteronômio 20:10–18)
Então, percebemos que, para a guerra ‘comum’, as mulheres, crianças e animais não deveriam ser mortos pelos israelitas, apenas matando-se os homens (entendidos como os ‘combatentes’). Aqui segue-se a prática padrão da época, uma vez que cada nação naquela região tornava os prisioneiros de guerra em escravos/servos. Então, na medida em que israelitas eram escravizados caso perdessem guerras, escravizariam os outros caso ganhassem, em uma reciprocidade. (Essa escravidão não funcionava da forma que funcionou a escravidão aqui nas américas, mas isso é tópico para textos futuros)
Contudo, o livro de Deuteronômio diferencia a guerra ‘comum’ da guerra com as nações caananitas: nesse último caso, não se deve deixar nada com fôlego de vida naquelas cidades, e uma destruição total deve ocorrer.
É aqui, num trecho que representa um discurso interpretativo de Moisés (e não uma fala divina direta ou indireta), que começa a possibilidade daquela confusão que estou tratando nessa série.
Para muitos de nós acaba sendo tentador já ler aqui uma obrigação de matar todos, inclusive mulheres e crianças, até pela contraposição com o caso anterior (a guerra geral).
Mas aqui o que está sendo sugerido não é tão forte assim: a contraposição é que, no caso da guerra geral, as mulheres, crianças e animais seriam parte do espólio de guerra, contudo, no caso da guerra contra os cananeus por ocasião da conquista, as mulheres, crianças e animais não deveriam ser tomados como espólio de guerra. Nada deve ser deixado com vida naquelas cidades, tamanha a destruição que se deveria impor às cidades-Estado cananeias. E as mulheres e crianças dessas cidades-Estado não deveriam ser integradas à sociedade israelita, porque cairia nesse problema de que, mesmo se as cidades-Estado cananeias fossem tomadas, a cultura cananeia já existente acabaria se impondo sobre a israelita, inviabilizando todo o projeto de construir uma sociedade com parâmetros mais rigorosos de justiça. Daí a destruição total.
Como bem sabemos agora já com uma história mais longa à nossa disposição, todo chamado à revolução carrega consigo essa tensão entre mudar as coisas e acabar por exagerar na hora de fazê-lo. Nesse texto vemos um caso bem inicial desse tipo de reflexão. O texto é aberto o suficiente para nos levar a discutir sobre o que exatamente aconteceria com as mulheres e crianças cananéias, mas não implica que elas deveriam ser assassinadas a sangue frio.
Dentro da Jurisprudência Judaica (Halacha) a respeito desse texto, busca-se um entendimento do texto que o torne mais coerente com o restante dos parâmetros da Torá, com ajuda dos demais escritos bíblicos e de tradições orais dos sábios.
A visão mais aceita é que, com base no texto do Deuteronômio, os israelitas NÃO deveriam chegar matando todos os cananeus. O que eles deviam fazer era primeiro, propor a paz. Nessa propositura da paz, além da questão do pagamento de tributos aos israelitas (um imposto que autorizaria a morada na terra), seria exigido das cidades-Estado cananéias que cumprissem pelo menos as 7 Leis de Noé, entre as quais há o preceito positivo de estabelecer tribunais para aplicar a justiça. Assim, o problema da injustiça das cidades-Estado cananéias seria resolvido sem entrar em uma guerra, e sem também tornar tais cidades em cidades israelitas, pois não se comprometeriam a seguir a Torá inteira, mas apenas os aspectos universais já mencionados. (Rambam, Mishné Torá, Melachim uMilchamot 6; Ramban, Comentário para Deuteronômio 20:10; Jerusalem Talmud, Shevi’it 6:1; Leviticus Rabbah 17:6)
Observamos uma oferta de paz desse tipo sendo feita na própria Torá, ainda sob a liderança de Moisés:
“Então Israel mandou mensageiros a Siom, rei dos amorreus, dizendo:
Deixa-me passar pela tua terra; não nos desviaremos pelos campos nem pelas vinhas; as águas dos poços não beberemos; iremos pela estrada real até que passemos os teus termos.
Porém Siom não deixou passar a Israel pelos seus termos; antes Siom congregou todo o seu povo, e saiu ao encontro de Israel no deserto, e veio a Jaza, e pelejou contra Israel.
Mas Israel o feriu ao fio da espada, e tomou a sua terra em possessão, desde Arnom até Jaboque, até aos filhos de Amom; porquanto o termo dos filhos de Amom era forte.
Assim Israel tomou todas as cidades; e habitou em todas elas, em Hesbom e em todas as suas aldeias.
Porque Hesbom era cidade de Siom, rei dos amorreus, que tinha pelejado contra o precedente rei dos moabitas, e tinha tomado da sua mão toda a sua terra até Arnom.” (Números 21:21–26)
Outra opção para a paz seria que os habitantes da cidade-Estado em questão aceitassem ir morar em outro lugar (Rambam, Mishné Torá, Melachim uMilchamot 6; Jerusalem Talmud, Shevi’it 6:1; Leviticus Rabbah 17:6). Para os sábios, esse é o motivo de que, em vários trechos a respeito das nações de Canaã, uma delas é consistentemente omitida. Ao invés de serem citadas as 7, geralmente se citam apenas 6 (você pode reler os trechos citados lá pra cima e averiguar isso por si mesmo). Na tradição oral isso foi interpretado como sinalizando que uma das nações cananeias, a dos Girgaseus, de fato aceitou se mudar da terra de Canaã, e Deus proveu a eles outra terra, no continente africano (Rashi para Êxodo 33:2; Leviticus Rabbah 17:6; Yerushalmi Talmud, Shevi’ith 6:1).
Contudo, caso a paz não fosse alcançada, aí sim viria a guerra de destruição total. Apesar de ser de fato uma guerra de destruição total, uma ala da cidade deveria permanecer relativamente desvigiada, de modo que todos que quisessem simplesmente fugir pudessem fazê-lo. Isso é aplicado para a guerra geral, mas é discutida sua aplicação a qualquer uma, inclusive a obrigatória contra os cananeus (Ramban, Addenda to Sefer ha-Mitzvot, positive precept, no. 5; Rav Yosef Babad, Minchat Chinnukh).
Por outro lado, ainda há a possibilidade de que pessoas dessas cidades-Estado se convertessem ao judaísmo, entrando no povo judeu. É o caso de Raabe e sua família no livro de Josué.
Portanto, em nenhum momento existe aqui a obrigação de matar todo mundo, inclusive mulheres e crianças. O que há é uma obrigação de não tomar nada das cidades caananitas como espólio de guerra, caso a guerra se tornasse inevitável, e, assim, não deixar nada com vida dentro delas. Admitia-se o efeito colateral que todos morressem em decorrência de uma guerra tão agressiva assim, mas não era o resultado preferido. Desde que a expulsão ocorresse (como os livros anteriores da Torá já preconizavam), já era suficiente; e mesmo a expulsão seria evitada como explicado.
Essa permissão legal de forma excepcional à morte de mulheres e crianças do inimigo em certas circunstâncias ainda é moralmente problemática, mas se aplicaria basicamente a uma única situação: a luta de conquista de Canaã. Aí temos de passar para o livro de Josué, que está na seção dos Neviim (Profetas). Esse livro narra a conquista da terra prometida por Josué, e ali vemos ilustrações dessa guerra total. Aqui algumas vezes se fala expressamente da morte de mulheres e/ou crianças:
“E tudo quanto havia na cidade [de Jericó] destruíram totalmente ao fio da espada, desde o homem até à mulher, desde o menino até ao velho, e até ao boi e gado miúdo, e ao jumento [exceto Raabe e sua família].” (Josué 6:21)
“E todos os que caíram aquele dia, assim homens como mulheres, foram doze mil, todos moradores de Ai.” (Josué 8:25)
Em fato, o livro do Deuteronômio havia dado um exemplo que vai numa direção similar, só que abordado de forma mais elíptica (e assim mais aberta). Nesse caso é um discurso recontando o texto de Números sobre o rei Siom que não aceitou a oferta de paz na transjordânia. Aqui o acontecimento é relatado como uma memória do que aconteceu, onde nenhum remanescente (ou sobrevivente) dos antigos habitantes permanecera no local, seja homem, mulher ou criança.
“E Siom saiu-nos ao encontro, ele e todo o seu povo, à peleja, em Jaza;
E o Senhor nosso Deus no-lo entregou, e o ferimos a ele, e a seus filhos, e a todo o seu povo.
E naquele tempo tomamos todas as suas cidades, e cada uma destruímos com os seus homens, mulheres e crianças; não deixamos a ninguém.
Somente tomamos por presa o gado para nós, e o despojo das cidades que tínhamos tomado.” (Deuteronômio 2:32–35)
O curioso é que, apesar do livro de Josué falar em termos muito duros de cidades sendo destruídas totalmente ao fio de espada (explicitamente), o próprio texto acaba enfraquecendo isso logo depois pelo menos em alguns dos casos:
“E Josué, e todo o Israel com ele, passou de Laquis a Eglom, e a sitiaram, e pelejaram contra ela.
E no mesmo dia a tomaram, e a feriram a fio de espada; e a todos os que nela estavam, destruiu totalmente no mesmo dia, conforme a tudo o que fizera a Laquis.
Depois Josué, e todo o Israel com ele, subiu de Eglom a Hebrom, e pelejaram contra ela.
E a tomaram, e a feriram ao fio de espada, assim ao seu rei como a todas as suas cidades; e a todos os que nelas estavam, a ninguém deixou com vida, conforme a tudo o que fizera a Eglom; e a destruiu totalmente, a ela e a todos os que nela estavam.” (Josué 10:34–37)
“Mas a Calebe, filho de Jefoné, deu uma parte no meio dos filhos de Judá, conforme a ordem do Senhor a Josué; a saber, a cidade de Arba, que é Hebrom; este Arba era pai de Anaque.
E Calebe expulsou dali os três filhos de Anaque: Sesai, e Aimã, e Talmai, gerados de Anaque.” (Josué 15:13,14)
Aqui vemos que o texto ora fala que Hebrom foi totalmente destruída, nada com vida foi deixado lá, mas logo depois vemos que ainda haviam pessoas em Hebrom. Os textos empregam uma linguagem hiperbólica, que obviamente soa muito chocante, mas não se comprometem com a exatidão de sua hipérbole. Suas afirmativas nesse sentido não são tão absolutas quanto podem parecer. (Nós veremos isso de forma mais clara quando examinarmos no próximo texto o caso dos amalequitas; e os sábios do Talmude também reconheciam o uso de linguagem hiperbólica e exagerada nas Escrituras, veja Chulin 90b)
Então, é só em Josué que de fato se associa a morte (a fio de espada) de crianças e mulheres à guerra contra os cananeus. A História Deuteronomista coloca apenas nesse ponto esse tipo de situação, dando sequência aos discursos de Moisés no livro do Deuteronômio. Por exemplo, Jericó na História Deuteronomista é vista como um caso de sucesso da destruição total que teria sido preconizada no discurso de Moisés em Deuteronômio.
Aqui podemos (e devemos) criticar o autor da História Deuteronomista (ou o autor do Livro de Josué) por achar que realmente podemos considerar um caso de sucesso uma situação envolvendo a morte de mulheres e crianças, ou por interpretar o mandamento da Torá a respeito da expulsão dos caananitas como permitindo isso. Nada nos obriga a concordar com o narrador desse livro nesse sentido! Também podemos criticar a Jurisprudência Judaica no sentido de que, apesar dela ter colocado muitas restrições a que isso acontecesse, não ter efetivamente excluído esse tipo de cenário. Aqui podemos nos aliar àqueles rabinos que efetivamente defenderam que nunca poderia ter sido a vontade divina nem mesmo permitir legalmente tais mortes (enquanto, como já ficou claro, é basicamente consensual que a vontade divina nunca fora de obrigar legalmente tais mortes dada as alternativas a isso serem preferidas).
Mas a meu ver tanto os textos como a discussão jurisprudencial deixam claro que matar mulheres e crianças não deixou de ser errado naquele cenário excepcional, mesmo da perspectiva dos próprios textos e da discussão tradicional a respeito. Me parece que o que havia ali era, em termos jurídico-modernos, uma isenção de punibilidade ou reprovabilidade num caso muito excepcional (um momento onde a nação israelita ainda era muito jovem, e poderia ela mesma ser exterminada totalmente pelos cananeus), mas isso em nenhum momento retirava a ilicitude ou imoralidade do ato em si. Por isso mesmo havia um esforço para evitar esse resultado, com múltiplas alternativas sendo preferíveis.
Agora, continuando com a narrativa bíblica, ao passarmos para o livro dos Juízes, temos uma visão bem menos triunfal que a do livro de Josué. O livro dos Juízes dá um grande catálogo de terras e cidades não conquistadas dos cananitas, dando a entender um processo muito mais pacífico e gradual de inserção na região. O linguajar sobre as conquistas também é bem mais suavizado.
“Então disse Judá a Simeão, seu irmão: Sobe comigo à minha herança. E pelejemos contra os cananeus, e também eu contigo subirei à tua herança. E Simeão partiu com ele.
E subiu Judá, e o Senhor lhe entregou na sua mão os cananeus e os perizeus; e feriram deles, em Bezeque, a dez mil homens.” (Juízes 1:3,4)
“Porém os filhos de Benjamim não expulsaram os jebuseus que habitavam em Jerusalém; antes os jebuseus ficaram habitando com os filhos de Benjamim em Jerusalém, até ao dia de hoje” (Juízes 1:21)
“E a casa de José mandou espias a Betel, e foi antes o nome desta cidade Luz.
E viram os espias a um homem, que saía da cidade, e lhe disseram: Ora, mostra-nos a entrada da cidade, e usaremos contigo de misericórdia.
E, mostrando-lhes ele a entrada da cidade, feriram-na ao fio da espada; porém àquele homem e a toda a sua família deixaram ir.
Então aquele homem se foi à terra dos heteus, e edificou uma cidade, e chamou o seu nome Luz; este é o seu nome até ao dia de hoje.” (Juízes 1:23–26)
“Manassés não expulsou os habitantes de Bete-Seã, nem mesmo dos lugares da sua jurisdição; nem a Taanaque, com os lugares da sua jurisdição; nem os moradores de Dor, com os lugares da sua jurisdição; nem os moradores de Ibleão, com os lugares da sua jurisdição; nem os moradores de Megido, com os lugares da sua jurisdição; e resolveram os cananeus habitar na mesma terra.” (Juízes 1:27)
“E sucedeu que, quando Israel cobrou mais forças, fez dos cananeus tributários; porém não os expulsou de todo.” (Juízes 1:28)
Além disso, é mais claramente estabelecido que os cananeus oprimiram os israelitas:
“E vendeu-os o Senhor na mão de Jabim, rei de Canaã, que reinava em Hazor; e Sísera era o capitão do seu exército, o qual então habitava em Harosete dos gentios.
Então os filhos de Israel clamaram ao Senhor, porquanto ele tinha novecentos carros de ferro, e por vinte anos oprimia violentamente os filhos de Israel.” (Juízes 4:2,3)
“Porém o Senhor disse aos filhos de Israel: Porventura dos egípcios, e dos amorreus, e dos filhos de Amom, e dos filisteus,
E dos sidônios, e dos amalequitas, e dos maonitas, que vos oprimiam, quando a mim clamastes, não vos livrei das suas mãos?” (Juízes 10:11,12)
Ou seja, aqui talvez valha mais a pena pensar de trás pra frente para entender o que está em jogo: é porque os cananeus de fato oprimiram os israelitas (e seus ancestrais hebreus pré-israelitas) dentro da própria terra prometida, que surgiu essa noção de que os israelitas deveriam acabar com os cananeus, mesmo se isso envolvesse meios extraordinários ‘impensáveis’ para outros casos.
O relato bíblico acaba nem sempre deixando isso tão claro, porque ali se imagina muito esquematicamente os hebreus ancestrais dos israelitas (Jacó e seus filhos) descendo em bloco de Canaã para o Egito e depois o povo de Israel voltando em bloco do Egito para Canaã. A realidade histórico-social subjacente aos textos é mais complexa, nos permitindo ver a continuidade de uma opressão cananita-egípcia contra os hebreus na própria terra de Canaã, e que a formação da identidade israelita envolveu uma contraposição justamente a esse domínio das cidades-Estado cananéias, com muitos dos elementos que formaram o povo de Israel habitando continuamente a terra prometida subordinados ao domínio cananeu, sem jamais ter descido ao Egito (enquanto eu não negue que parte do que veio a ser o povo de Israel de fato esteve no Egito e ali passou por uma experiência de escravização com posterior fuga ‘de volta’ à Canaã, mas isso é tópico para outro dia). Algo disso ainda é sugerido por textos como 1Crônicas 7 a respeito da tribo de Efraim, por exemplo.
Dessa forma, a diferença entre cananeus e israelitas era mais de ordem sociopolítica do que étnica, um conflito entre grupamentos sociais diferentes. O relato que vemos em Josué, lido nas entrelinhas, reflete primariamente uma guerra de libertação, não de conquista (apesar de ter chegado a nós como se parecesse esse último quando não estamos atentos às entrelinhas que eram óbvias para aqueles que primeiro escreveram esses textos). Ou seja, podemos ler Josué sob as lentes de uma revolução sociopolítica, tal como podemos fazer para Êxodo:
“No Êxodo 1–24, uma revolta religiosa e outra social vão claramente de mãos dadas. Um povo decide não mais aceitar passivamente sua difícil condição social porque ouviu dizer que um Deus, anteriormente desconhecido para ele (ao menos pelo seu verdadeiro nome), quer, em breve tempo, mudar a posição social desse povo. […] diante de nós, no Êxodo 1–24, temos um relato (embora muito deteriorado) da primeira revolução sociopolítica da história do mundo com base em ideologia.” (DUS, 1975, p. 28)
Além disso, a História Deuteronomista mais especificamente (incluindo aqui o Livro do Deuteronômio) é uma reflexão a respeito da falha de Israel em cumprir a Aliança da Torá, e seu diagnóstico é que tal falha teve como culpado a incapacidade de Israel de se separar por completo dos cananeus. Então, na sua reflexão (certa ou errada), se eles tivessem usado daqueles meios extraordinários, poderiam ter evitado a falha de Israel, e, por extensão, teria sido evitado o exílio assírio e o exílio babilônico com que a História Deuteronomista termina.
“Habitando, pois, os filhos de Israel no meio dos cananeus, dos heteus, e amorreus, e perizeus, e heveus, e jebuseus,
Tomaram de suas filhas para si por mulheres, e deram as suas filhas aos filhos deles; e serviram aos seus deuses.
E os filhos de Israel fizeram o que era mau aos olhos do Senhor, e se esqueceram do Senhor seu Deus; e serviram aos baalins e a Astarote.” (Juízes 3:5–7)
De fato, ainda é indicado já no início do livro de Juízes que Deus não mais apoiaria o desterro dos cananeus:
“E subiu o anjo do SENHOR de Gilgal a Boquim, e disse: Do Egito vos fiz subir, e vos trouxe à terra que a vossos pais tinha jurado e disse: Nunca invalidarei a minha aliança convosco.
E, quanto a vós, não fareis acordo com os moradores desta terra, antes derrubareis os seus altares; mas vós não obedecestes à minha voz. Por que fizestes isso?
Assim também eu disse: Não os expulsarei de diante de vós; antes estarão como espinhos nas vossas ilhargas, e os seus deuses vos serão por laço.” (Juízes 2:1–3)
Então, toda a relevância desse ponto, dentro da própria narrativa da História Deuteronomista, basicamente girou em torno dos 7 anos de conquista sob Josué narrado no livro de Josué. Sendo que, para a pesquisa bíblica moderna, a narrativa de Josué é exagerada, então mesmo no que seria o período histórico correspondente a isso, o mais provável é que nenhum massacre efetivamente aconteceu da forma como aparentemente descrito ali.
Na sequência da História Deuteronomista, vemos tanto em Samuel quanto em Reis que a situação dos cananeus não mudou substancialmente desde a narrativa do livro dos Juízes. Nunca mais houve as supostas destruições totais. Só que os cananeus efetivamente perderam sua independência quando os reis israelitas conseguiram unificar o território agora sob um regime estatal israelita. Nesse caso os cananeus seja foram integrados ao povo como um todo, seja foram submetidos a tributo de trabalho pelo Estado, mas em nenhum momento se pensou em exterminá-los, mesmo que agora, havendo Reis Israelitas, isso seria possível.
“Quanto a todo o povo que restou dos amorreus, heteus, perizeus, heveus, e jebuseus, e que não eram dos filhos de Israel,
A seus filhos, que restaram depois deles na terra, os quais os filhos de Israel não puderam destruir totalmente, Salomão os reduziu a tributo servil, até hoje.” (1 Reis 9:20,21)
Se formos agora para o restante da Bíblia Hebraica, seja nos 15 Profetas Literários dos Neviim, seja nos vários livros dos Ketuvim, em nenhum momento encontramos algum estímulo a matar caananitas, muito menos de suas mulheres ou crianças. Ao que tudo indica, esses outros livros não pressupõem uma regra permitindo tal coisa ou incentivando algo que pudesse levar a esse cenário. Nesse sentido, os demais livros dos Neviim e do Ketuvim seguem mais de perto os 4 primeiros livros da Torá, que não pressupunham esse tipo de coisa.
Portanto, podemos concluir que Deus não ordenou o extermínio de todos os cananeus, incluindo mulheres e crianças. O que ocorre é que o autor da História Deuteronomista interpretou que isso seria possível, e nas histórias de Josué é narrado como se isso tivesse acontecido em alguns casos, resguardada a retórica hiperbólica desse livro. A Jurisprudência Judaica tentou compatibilizar todo esse corpo de escritos que puxavam em direções diferentes, admitindo algum tipo de permissão legal nesse caso muito excepcional, mas apenas se todas as alternativas não funcionassem.
Em todo caso, a permissão legal aqui envolvida seria uma questão de quando a Lei permite algo imoral, não implicando em uma validação moral do ato. Obviamente podemos e devemos aperfeiçoar a Lei para que um ato imoral muito grave não mais seja legalmente permitido — no caso da Lei Judaica, acaba que, quando essa regra veio à tona, a situação à qual seria aplicável não mais existia, tanto porque a conquista de Canaã já havia passado quanto porque o exílio assírio já havia misturado os povos. O livro de Deuteronômio só começou a ser aplicado no Reino de Josias, que é posterior a esses eventos todos (seja porque foi escrito por volta dessa época, como pensa a crítica bíblica moderna, seja porque foi redescoberto nessa época, como a narrativa do livro dos Reis coloca). Então, a regra em questão nunca teve uso prático. Daí a História Deuteronomista usá-la num sentido pedagógico e literário, para ensinar a severa consequência dos israelitas terem se associado aos cananeus por não terem destruído totalmente essas cidades-Estado — ao estabelecer uma consequência severa excepcional contra os cananeus em termos hipotéticos no livro do Deuteronômio.
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