[191] Polução Noturna no Yom Kipur (Dia do Perdão)

A Estrela da Redenção
4 min readApr 1, 2022

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O tratado Yoma da Mishná/Talmude é inteiramente dedicado a descrever em detalhes o ritual do Yom Kipur tal como era feito no Templo, quando este ainda existia. Esse dia era especialmente sagrado, pois era a única vez no ano em que uma pessoa — o Sumo-Sacerdote — poderia entrar no Lugar Santíssimo (ou Santidade das Santidades), o espaço mais reservado do Templo onde a Presença Divina residia e onde no Primeiro Templo ficava a Arca da Aliança (o Segundo Templo não continha a Arca).

Apesar do Templo não mais existir (desde a própria redação da Mishná/Talmude), o Yom Kipur ainda é um dia de extrema importância no calendário judaico. É o dia no qual a expiação e o perdão são outorgados ao povo judeu e mesmo à humanidade. Por isso é um dia de contrição e introspecção, bem como de reconciliação uns com os outros por desagravos eventualmente cometidos.

A regra mais conhecida a respeito do Yom Kipur — que mesmo pessoas pouco conhecedoras do judaísmo chegam a conhecer — é que se faz um jejum de comida e água nesse dia inteiro (de um pôr do sol ao outro, conforme a maneira judaica de considerar o início do dia no pôr do sol). A abstenção da alimentação e da hidratação quebranta o corpo de modo a trazer ao judeu essa atitude de humildade, contrição, mesmo de empatia ao sofrimento e reconhecimento de nossa vulnerabilidade comum.

Outra regra referente a esse dia é que nele existe a abstenção sexual. O judaísmo não vê a atividade sexual de forma negativa. O amor erótico é mesmo celebrado num dos livros da Bíblia Hebraica, o Cântico dos Cânticos, e a relação entre Deus e o povo de Israel é pensada pelos profetas em termos eróticos. Em que pesem as diversas interpretações judaicas a respeito da sexualidade, um consenso transversal é que o sexo é prima facie permitido, a menos que seja proibido especificamente. Portanto, o pressuposto geral é a permissão, enquanto as proibições são adstritas a um rol taxativo (ainda se fazendo a diferenciação entre proibições da Torá e proibições acessórias rabínicas, entre outras).

O Yom Kipur é um exemplo no qual se traz uma proibição ao sexo. Durante esse dia, o sexo está proibido. O motivo é óbvio, dado que quebra com a atmosfera de restrição à indulgência sensorial e de concentração muito focada na rememoração de nossos erros enquanto indivíduo e comunidade. Note que em dias sagrados o sexo geralmente não só é permitido, como também incentivado. O Yom Kipur foge à essa regra geral.

Mas uma coisa que acho bem curiosa é que o tratado Yoma no Talmude termina com uma discussão bem inusitada: a polução noturna no Yom Kipur. Ora, a pessoa dorme durante uma parte do Yom Kipur. Se tal pessoa tiver testículos e pênis, existe alguma probabilidade de que acabe tendo um sonho erótico e ejacule durante o sono. Isso não acaba pondo a perder toda concentração e restrição preconizadas por esse dia?

Yoma 88a nos traz a discussão a respeito dessa dúvida.

“Green Oasis” [Oásis Verde], Vangel Naumovski, 1968.

Um sábio tanaíta ensinou ante Rav Nahman: aquele que sofre uma polução noturna no Yom Kipur na verdade terá seus pecados perdoados!

Já a escola de Rabbi Ismael ensinava que isso depende um pouco. Caso ejacule involuntariamente no Yom Kipur, deve ficar preocupado o ano inteiro seguinte a respeito de se seu jejum foi ou não aceito, mas, caso sobreviva mais um ano, isso garante uma porção no mundo vindouro.

Rav Nahman bar Yitzhak por sua vez disse: o mundo inteiro está faminto, e ele (que sofreu a ejaculação involuntária, presumivelmente uma polução noturna) está saciado. Ou seja, enquanto todos os demais judeus do sexo masculino estão sem poder ter um orgasmo, esse judeu específico pôde se satisfazer, mesmo sem pretendê-lo. Como foi algo que simplesmente ‘aconteceu’, seria um sinal da compaixão divina por essa pessoa.

Por fim, Rav Dimi disse que ver esperma no Yom Kipur é sinal de que essa pessoa verá uma vida longa e terá filhos. Seria uma alusão ao verso: “quando a sua alma se puser por expiação do pecado, verá a sua posteridade, prolongará os seus dias”. (Isaías 53:10) Mas o verso não está escrito, apenas aludido implicitamente.

E é com essa frase de Rav Dimi que o tratado Yoma termina!

Então, fazendo o apanhado geral, pode-se dizer que, enquanto uma polução voluntária no Yom Kipur seja algo estritamente proibido, uma polução involuntária (p. ex. durante o sono) é um sinal de bênção, seja de perdão dos pecados, seja de vigor e fertilidade (ou mesmo de virilidade), seja simplesmente de ter um prazer extra que não seria possível nesse dia tão ‘difícil’ dada a abstinência alimentar e sexual.

‘Acidentes’ acontecem, e esse é um acidente feliz.

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A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.