[192] Comendo porco no jejum do Yom Kipur?
O tratado Yoma da Mishná/Talmude é inteiramente dedicado a descrever em detalhes o ritual do Yom Kipur (o Dia do Perdão, previsto na Torá/Bíblia Hebraica) tal como era feito no Templo, quando este ainda existia. Esse dia era especialmente sagrado, pois era a única vez no ano em que uma pessoa — o Sumo-Sacerdote — poderia entrar no Lugar Santíssimo (ou Santidade das Santidades), o espaço mais reservado do Templo onde a Presença Divina residia e onde no Primeiro Templo ficava a Arca da Aliança (o Segundo Templo não continha a Arca).
Apesar do Templo não mais existir (desde a própria redação da Mishná/Talmude), o Yom Kipur ainda é um dia de extrema importância no calendário judaico. É o dia no qual a expiação e o perdão são outorgados ao povo judeu e mesmo à humanidade. Por isso é um dia de contrição e introspecção, bem como de reconciliação uns com os outros por desagravos eventualmente cometidos.
A regra mais conhecida a respeito do Yom Kipur — que mesmo pessoas pouco conhecedoras do judaísmo chegam a conhecer — é que se faz um jejum de comida e água nesse dia inteiro (de um pôr do sol ao outro, conforme a maneira judaica de considerar o início do dia no pôr do sol). A abstenção da alimentação e da hidratação quebranta o corpo de modo a trazer ao judeu essa atitude de humildade, contrição, mesmo de empatia ao sofrimento e reconhecimento de nossa vulnerabilidade comum.
O tratado Yoma traz uma previsão no mínimo inusitada: o caso onde seria legítimo que uma pessoa pertencente à comunidade judaica comesse porco no Yom Kipur! Não somente quebrando o jejum, mas comendo um alimento proibido pela Lei Judaica.
Isso pareceria à primeira vista uma dupla quebra de preceitos judaicos a ser cometido justamente no dia em que se busca o perdão pelas violações aos preceitos cometidas durante o ano que passou. Mas há cenários que conferem legitimidade mesmo a uma ação que pareceria injustificável.
Em Yoma 82–83 a discussão gira em torno de uma grávida e de um doente no Yom Kipur. A Mishná (Yoma 82a) começa estabelecendo a normativa da Lei Oral Judaica: 1) se uma grávida sente o odor de comida e acaba ficando com um ‘desejo’ incontrolável por aquela comida, ela é alimentada até que se recupere; 2) se uma pessoa está doente, ela é alimentada de acordo com o aconselhamento médico, e se não estiver disponível tal aconselhamento, ela é alimentada de acordo com suas próprias instruções, até que ela diga que tem comido o suficiente para ficar bem.
Em seguida o texto da Guemará (Yoma 32a) passa a comentar e destrinchar esses pontos abordados pela Mishná.
E se a grávida tiver esse ‘desejo’ por alimentos proibidos, como carne consagrada (a ser comida apenas pelos sacerdotes) ou carne de porco?
Os sábios propuseram um método gradativo para lidar com esse tipo de situação: primeiro, se coloca um palito fino no ‘suco’ ou ‘molho’ daquele alimento proibido, e o palito é colocado na boca dela. Se a mente dela ficar satisfeita simplesmente com isso, para-se aqui, sem que ela coma nada que seja proibido. Contudo, se ela ainda não estiver bem por conta desse ‘desejo’, ela é alimentada com o alimento proibido!
A justificativa para que uma grávida possa comer porco no Yom Kipur é que a esmagadora maioria dos preceitos judaicos é suspensa em situações onde a vida humana esteja ameaçada. Então, como a grávida corre risco de vida por não se alimentar daquilo pela qual ficou fixada no ‘desejo’, a obrigação de não comer no Yom Kipur e a obrigação de não comer carne de porco simplesmente é suspensa. Não há pecado ou transgressão envolvida nisso.
Quanto à pessoa doente, uma discussão interessante trazida pela Guemará (Yoma 83a) é a seguinte: e se a opinião médica for a de que a pessoa não precisa comer, mas a opinião da própria pessoa for a de que precisa sim se alimentar?
Rabbi Yahanai afirma que nesse caso deve-se ouvir a opinião da própria pessoa doente. O fundamento disso encontra-se em um trecho do livro de Provérbios:
“O coração conhece a sua própria amargura.” (Provérbios 14:10)
Ou seja, a própria pessoa conhece melhor seu sofrimento e angústia com a situação, mais do que alguém externo.
A Guemará pergunta: mas isso não é óbvio? E logo responde: o motivo de se estabelecer isso é para deixar afastar a ideia de que a opinião médica teria mais peso, considerando que o médico teria muita experiência com a doença sofrida pelo paciente. Então, o verso ensina que independente da experiência do médico, para o caso concreto da pessoa individual sempre será esta que melhor entenderá sua própria dor.
Curiosamente, a posição no caso inverso é também inversa: se a pessoa doente acha que não precisa comer, mas o médico acha que ela precisa sim comer, ouve-se o médico. A razão é que o doente pode estar confuso em vista de sua condição de saúde.
Eu acrescentaria aqui que os sábios nessa decisão jurisprudencial adotam uma maior aversão ao risco em prol de minimizar a chance da perda de uma vida humana. No caso em que o doente acha que não precisa de comida, mas o médico pensa que ele precisa, por via das dúvidas é melhor alimentar o doente, uma vez que pode ser que o médico esteja a par de algo que o doente não está (nesse caso, o risco objetivo envolvido na situação conforme o saber médico). Já no caso em que o doente acha que precisa de comida, mas o médico pensa que ele não precisa, por via das dúvidas é melhor alimentar o doente, uma vez que o doente também deve estar a par de algo que o médico não está (nesse caso, sua própria condição subjetiva). Ou seja, trata-se de uma aversão ao risco em prol da solução que mais garante a continuidade daquela vida: alimentar a pessoa doente. Na dúvida, o doente deve ser alimentado.
E mais adiante na Guemará um dos sábios expressa de forma mais enfática essa questão: Mar bar Rav Ashi afirma que, mesmo se 100 médicos afirmam que a pessoa doente não precisa comer, mas o doente ele mesmo afirma que precisa, a opinião do doente é a ouvida, justamente porque cada coração conhece sua própria amargura.
Dessa forma, é legítimo a um judeu ou judia comer porco no Yom Kipur? Geralmente não, mas há situações em que sim, onde é possível um judeu comer porco no Yom Kipur sem estar transgredindo a Lei Judaica. Nada na Lei Judaica pode ser aplicado sem que passe pelo crivo da racionalidade e razoabilidade, por um processo de raciocínio criterioso. E nos casos vistos acima a salvaguarda da vida humana toma precedência, mesmo que apenas ‘por via das dúvidas’.
“Portanto, os meus estatutos e os meus juízos guardareis; os quais, observando-os o homem, viverá por eles.” (Levítico 18:5)
Viverá por eles — e não morrer.
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