[192] Comendo porco no jejum do Yom Kipur?

A Estrela da Redenção
5 min readApr 1, 2022

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O tratado Yoma da Mishná/Talmude é inteiramente dedicado a descrever em detalhes o ritual do Yom Kipur (o Dia do Perdão, previsto na Torá/Bíblia Hebraica) tal como era feito no Templo, quando este ainda existia. Esse dia era especialmente sagrado, pois era a única vez no ano em que uma pessoa — o Sumo-Sacerdote — poderia entrar no Lugar Santíssimo (ou Santidade das Santidades), o espaço mais reservado do Templo onde a Presença Divina residia e onde no Primeiro Templo ficava a Arca da Aliança (o Segundo Templo não continha a Arca).

Apesar do Templo não mais existir (desde a própria redação da Mishná/Talmude), o Yom Kipur ainda é um dia de extrema importância no calendário judaico. É o dia no qual a expiação e o perdão são outorgados ao povo judeu e mesmo à humanidade. Por isso é um dia de contrição e introspecção, bem como de reconciliação uns com os outros por desagravos eventualmente cometidos.

A regra mais conhecida a respeito do Yom Kipur — que mesmo pessoas pouco conhecedoras do judaísmo chegam a conhecer — é que se faz um jejum de comida e água nesse dia inteiro (de um pôr do sol ao outro, conforme a maneira judaica de considerar o início do dia no pôr do sol). A abstenção da alimentação e da hidratação quebranta o corpo de modo a trazer ao judeu essa atitude de humildade, contrição, mesmo de empatia ao sofrimento e reconhecimento de nossa vulnerabilidade comum.

O tratado Yoma traz uma previsão no mínimo inusitada: o caso onde seria legítimo que uma pessoa pertencente à comunidade judaica comesse porco no Yom Kipur! Não somente quebrando o jejum, mas comendo um alimento proibido pela Lei Judaica.

Isso pareceria à primeira vista uma dupla quebra de preceitos judaicos a ser cometido justamente no dia em que se busca o perdão pelas violações aos preceitos cometidas durante o ano que passou. Mas há cenários que conferem legitimidade mesmo a uma ação que pareceria injustificável.

Em Yoma 82–83 a discussão gira em torno de uma grávida e de um doente no Yom Kipur. A Mishná (Yoma 82a) começa estabelecendo a normativa da Lei Oral Judaica: 1) se uma grávida sente o odor de comida e acaba ficando com um ‘desejo’ incontrolável por aquela comida, ela é alimentada até que se recupere; 2) se uma pessoa está doente, ela é alimentada de acordo com o aconselhamento médico, e se não estiver disponível tal aconselhamento, ela é alimentada de acordo com suas próprias instruções, até que ela diga que tem comido o suficiente para ficar bem.

Em seguida o texto da Guemará (Yoma 32a) passa a comentar e destrinchar esses pontos abordados pela Mishná.

E se a grávida tiver esse ‘desejo’ por alimentos proibidos, como carne consagrada (a ser comida apenas pelos sacerdotes) ou carne de porco?

“Pigs” [Porcos], Franz Marc, 1912.

Os sábios propuseram um método gradativo para lidar com esse tipo de situação: primeiro, se coloca um palito fino no ‘suco’ ou ‘molho’ daquele alimento proibido, e o palito é colocado na boca dela. Se a mente dela ficar satisfeita simplesmente com isso, para-se aqui, sem que ela coma nada que seja proibido. Contudo, se ela ainda não estiver bem por conta desse ‘desejo’, ela é alimentada com o alimento proibido!

A justificativa para que uma grávida possa comer porco no Yom Kipur é que a esmagadora maioria dos preceitos judaicos é suspensa em situações onde a vida humana esteja ameaçada. Então, como a grávida corre risco de vida por não se alimentar daquilo pela qual ficou fixada no ‘desejo’, a obrigação de não comer no Yom Kipur e a obrigação de não comer carne de porco simplesmente é suspensa. Não há pecado ou transgressão envolvida nisso.

Quanto à pessoa doente, uma discussão interessante trazida pela Guemará (Yoma 83a) é a seguinte: e se a opinião médica for a de que a pessoa não precisa comer, mas a opinião da própria pessoa for a de que precisa sim se alimentar?

Rabbi Yahanai afirma que nesse caso deve-se ouvir a opinião da própria pessoa doente. O fundamento disso encontra-se em um trecho do livro de Provérbios:

“O coração conhece a sua própria amargura.” (Provérbios 14:10)

Ou seja, a própria pessoa conhece melhor seu sofrimento e angústia com a situação, mais do que alguém externo.

A Guemará pergunta: mas isso não é óbvio? E logo responde: o motivo de se estabelecer isso é para deixar afastar a ideia de que a opinião médica teria mais peso, considerando que o médico teria muita experiência com a doença sofrida pelo paciente. Então, o verso ensina que independente da experiência do médico, para o caso concreto da pessoa individual sempre será esta que melhor entenderá sua própria dor.

Curiosamente, a posição no caso inverso é também inversa: se a pessoa doente acha que não precisa comer, mas o médico acha que ela precisa sim comer, ouve-se o médico. A razão é que o doente pode estar confuso em vista de sua condição de saúde.

Eu acrescentaria aqui que os sábios nessa decisão jurisprudencial adotam uma maior aversão ao risco em prol de minimizar a chance da perda de uma vida humana. No caso em que o doente acha que não precisa de comida, mas o médico pensa que ele precisa, por via das dúvidas é melhor alimentar o doente, uma vez que pode ser que o médico esteja a par de algo que o doente não está (nesse caso, o risco objetivo envolvido na situação conforme o saber médico). Já no caso em que o doente acha que precisa de comida, mas o médico pensa que ele não precisa, por via das dúvidas é melhor alimentar o doente, uma vez que o doente também deve estar a par de algo que o médico não está (nesse caso, sua própria condição subjetiva). Ou seja, trata-se de uma aversão ao risco em prol da solução que mais garante a continuidade daquela vida: alimentar a pessoa doente. Na dúvida, o doente deve ser alimentado.

E mais adiante na Guemará um dos sábios expressa de forma mais enfática essa questão: Mar bar Rav Ashi afirma que, mesmo se 100 médicos afirmam que a pessoa doente não precisa comer, mas o doente ele mesmo afirma que precisa, a opinião do doente é a ouvida, justamente porque cada coração conhece sua própria amargura.

Dessa forma, é legítimo a um judeu ou judia comer porco no Yom Kipur? Geralmente não, mas há situações em que sim, onde é possível um judeu comer porco no Yom Kipur sem estar transgredindo a Lei Judaica. Nada na Lei Judaica pode ser aplicado sem que passe pelo crivo da racionalidade e razoabilidade, por um processo de raciocínio criterioso. E nos casos vistos acima a salvaguarda da vida humana toma precedência, mesmo que apenas ‘por via das dúvidas’.

“Portanto, os meus estatutos e os meus juízos guardareis; os quais, observando-os o homem, viverá por eles.” (Levítico 18:5)

Viverá por eles — e não morrer.

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Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.