[23] A profecia bíblica clássica NÃO é sobre ‘prever o futuro’

A Estrela da Redenção
3 min readJun 30, 2020

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É comum associarmos ‘profecia’ com ‘previsão do futuro’ e até mesmo com ‘milagres’. Mas quando olhamos para os livros dos profetas clássicos, que escreveram o grosso dos livros que levam seus nomes (com exceção de Jonas), vemos que ali a questão crucial não é a previsão do futuro (e a ocorrência de milagres é quase ausente).

“Consulting the Oracle” [Consultando o Oráculo], John William Waterhouse, 1884. Ao contrário do entendimento popular sobre profetas, o profetismo israelita clássico NÃO era como consultar um oráculo.

Não é bem correto dizer que os profetas preveem o futuro. Eles anunciam o que Deus irá fazer, considerando a história já ocorrida.

Por exemplo, suponha que eu diga que amanhã eu irei no mercado. Você dizer ‘Valdenor irá ao mercado amanhã’ não é propriamente prever o futuro (enquanto tecnicamente, caso eu de fato vá ao mercado, você terá ‘predito’ o futuro). Isso inclusive entrevê a possibilidade de eu mudar de ideia, e da mesma forma, na profecia clássica, Deus também pode mudar de ideia!

O que os profetas fazem é um raciocínio condicional: por exemplo, dado que tais e tais injustiças e erros foram cometidos, então daqui há tantas décadas ou séculos, Deus trará juízo da forma X e Y.

Mais especificamente, um grande tema dos profetas é a perspectiva do exílio do povo hebreu (na Babilônia) e a subsequente redenção com a volta do exílio.

O que é a ‘profecia’? É muito mais esse condicional (se X, então Y) do que uma previsão do resultado (o Y). Pois é o condicional que informa a atitude que precisamos ter HOJE.

A ideia de que profecia tem a ver com previsão do futuro tem relação com outro tipo de literatura judaica: a apocalíptica. Existe apenas um gênero dessa literatura na Bíblia Hebraica (o livro de Daniel), mas o cristianismo, que nasceu no contexto da apocalíptica judaica, tem uma concepção de profecia muito mais ligada à ideia de um ‘apocalipse’, o ‘fim dos tempos’. Não é assim com o judaísmo de uma maneira geral, onde a profecia é mais ligada à marcha normal da história. Então, o livro de Daniel (e o raciocínio da apocalíptica) tem um peso muito menor no judaísmo do que tem no cristianismo (que produziu o livro do Apocalipse).

E o exemplo-mor desse contraste entre as duas religiões é a posição sobre Daniel (do livro de Daniel supracitado). Os cristãos o tratam como um profeta, colocando-o nas suas bíblias na mesma seção de Ezequiel, Jeremias, Isaías, etc. isto é junto dos profetas israelitas clássicos. Mas os judeus consideram que Daniel NÃO era um profeta, mesmo que ele fale do futuro. Daniel é considerado um SÁBIO, e ele fala do futuro nessa condição. Por isso, o livro de Daniel na ordem judaica dos livros não fica na seção “Profetas” (Nevi’im), mas na seção “Escritos” (Ketuvim).

A pesquisa bíblica acadêmica tem corroborado o judaísmo nisso ao mostrar como a apocalíptica judaica nasce a partir da literatura de sabedoria (vide p. ex. ‘Teologia do Antigo Testamento’ de Gerhard von Rad). A esta diferença entre profetismo clássico e apocalíptica voltaremos mais para frente na série.

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A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.