[26] Encarando a Extinção do Próprio Povo: a singularidade da Bíblia Hebraica

A Estrela da Redenção
4 min readJul 5, 2020

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Como se explica esses aspectos tão singulares do profetismo israelita (em seu proto existencialismo judaico), que moldaram a Bíblia Hebraica como um todo? Seu pensamento de longuíssimo prazo, seu caráter histórico, sua preocupação com a justiça social, com a libertação da opressão? É que os profetas israelitas estavam a encarar o risco da extinção do seu próprio povo, de sua história coletiva — ‘ser abandonado por Deus’.

Foi por encarar esse avassalador abismo existencial — a extinção de toda uma história e modo de vida — que eles chegaram numa perspectiva existencial tão única. Sem entender esse aspecto, você não consegue entender porque o braço de religião que adveio da Bíblia é tão diferente daquele que vem das religiões orientais, seja do subcontinente indiano (hinduísmo, jainismo, budismo) seja do extremo oriente em especial China (confucionismo, taoísmo).

Não é à toa que essas religiões parecem mais ‘filosóficas’ que a Bíblia Hebraica. Basta comparar os textos mais antigos entre as grandes religiões mundiais para ver a diferença: os livros do profetismo israelita com os Upanishads hindus mais antigos (estes começando a ser escritos um pouco depois do início do profetismo israelita), ou as primeiras fontes do que viria a ser a Torá com os Vedas hindus mais antigos (sendo postos por escrito a partir de tradições orais num período similar). É que essas religiões são frutos de civilizações maiores e mais consolidadas. Por isso o luxo a que podiam se dar com reflexões metafísicas e discussões teóricas mais abstratas e sofisticadas logo de ‘início’.

Não foi assim com a civilização israelita que originou a Bíblia. A história da Bíblia Hebraica é a da construção e preservação de uma civilização própria por um povo minúsculo. Um povo vulnerável diante de civilizações muito maiores (egípcia, mesopotâmica, helênica, romana…) que se sucederam no domínio daquela região.

Pelo próprio posicionamento geográfico (a Palestina, o ‘centro do [velho] mundo’, na confluência entre Ásia, África e Europa), já seria de se esperar uma maior instabilidade e rotatividade de povos e civilizações ali (mas também a oportunidade de receber influências por diversos lados…). Então a questão primordial era existencial no sentido mais ‘pé no chão’ possível: como sobreviver? como persistir? como… existir?

Ao tempo do profetismo israelita clássico, essa questão de sobrevivência era premente. Quando encontramos o primeiro profeta clássico, Amós, estamos em 760 AEC aproximadamente, e o povo israelita/hebreu estava dividido em dois reinos: o Reino de Israel ao Norte e o Reino de Judá ao Sul.

Uma ameaça gravíssima vinha do leste: o império assírio (e posteriormente, o babilônico), com sua política de deportar populações inteiras e substituir/misturar os povos de uma região com os de outra. A perspectiva para o futuro era simplesmente sombria: ambos os reinos caírem, suas populações deportadas em grande escala, o que sobrasse ‘apagado’ pela introdução de novos habitantes e imposição de uma nova ordem. A extinção final do povo hebreu.

“The Scream” [O Grito], Edvard Munch, 1893.

Àquele tempo tradições orais antigas já estavam sendo postas pôr escrito, provavelmente desde os reinados de Davi e Salomão (que a tradição atribui como um Reino Unido prévio à divisão entre Israel/Norte e Judá/Sul), por volta de 1.000–900 AEC. Narrativas e leis que falavam de um Deus supremo, que amava seu povo, que não só demandava certas condutas do homem como se comprometia e se vinculava pelo seu próprio padrão de justiça e benignidade, que libertara o povo de seus opressores diversas vezes, e cujas regras se seguidas fariam a justiça na terra para todos… (Isso constava das fontes mais antigas da Torá, como a javista e a eloísta dentro da hipótese documental, e em certos cânticos muito antigos como o Cântico de Moisés/Miriã no Êxodo e o Cântico de Débora em Juízes)

O que os profetas fizeram foi retrabalhar essas tradições à luz dessa ameaça de extinção radical. Sim, o que vocês mais temem irá acontecer. A catástrofe irá acontecer. Vocês acham que Deus escolheu vocês…. Sim, Ele escolheu vocês como o povo deles, mas isso não protegerá vocês. Vocês abandonaram os caminhos dele e a injustiça é enorme na terra. Vocês acham que o Dia do Senhor será um dia de libertação dos opressores. Não será! Na verdade o Dia do Senhor será o julgamento da opressão que vocês promovem! A elite governante injusta será removida, a terra será devastada. Parecerá que Deus ABANDONOU vocês para sempre.

A questão da injustiça é tão importante para Deus que tudo o que construímos sob essa base tem que ser DEMOLIDO. A atual ordem das coisas precisa ser DESTRUÍDA. Sim, parece que nosso Deus nacional enlouqueceu. Ele não vai poupar nem sua própria morada, o Templo. Sim, a casa do nosso Deus será destruída, Deus também irá sofrer as consequências. Praticamente um auto-deicídio, onde Deus se volta contra si mesmo e contra seu próprio povo. Onde estará Deus?

Mas… das ruínas um remanescente persistirá e entre os escombros uma nova ordem poderá ser estabelecida. A quase extinção será superada pela persistência e perseverança de um punhado de vossos descendentes. O legado do povo de Deus não será perdido.

Assim, os impérios passarão. Mas vocês permanecerão para sempre — pela continuidade histórica de uma descendência disposta a construir e reconstruir quantas vezes preciso for o sonho de uma vida comunitária justa, sob a inspiração da Transcendência Última vista como amor apaixonado absoluto e incondicional — presente mesmo na própria ausência. “O amor é forte como a morte” (Cântico dos Cânticos 8:6); é por meio dele que a sombria ameaça da extinção é superada.

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Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.