[27] A Ausência de Vida Após a Morte na Bíblia Hebraica

A Estrela da Redenção
4 min readJul 7, 2020

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Um aspecto muito importante para a compreensão adequada da Bíblia Hebraica é a ausência da questão da vida após a morte nela. Com a exceção* do livro mais tardio (o livro de Daniel, que se refere a uma ressurreição de ‘alguns’ num futuro indeterminado e que, portanto, não fornece nenhuma doutrina sistemática a respeito), a possibilidade do indivíduo viver após sua própria morte é notadamente ausente.

Isso vale para a Torá, para os Salmos, para os profetas israelitas clássicos, para os livros de sabedoria, e assim por diante. Tudo o que esses livros se preocupam é com esta vida aqui e agora.

Essa informação pode assustar muita gente, acostumados a pensar que religião tem a ver com crenças sobre o que ocorre após a morte, e sobre a possibilidade de recompensa, punição ou salvação após a morte. Pois bem, a verdade é que nem toda religião tem isso como foco. O judaísmo não tem esse foco. Também não possuem esse foco o confucionismo e o taoísmo (chineses) e o xintoísmo (japonês), enquanto diferentemente do judaísmo essas religiões chinesas e japonesa praticam culto de ancestrais. A centralidade da vida após a morte é mais uma coisa do cristianismo, do islamismo, do zoroastrismo e das religiões dhármicas originadas no subcontinente indiano (hinduísmo, jainismo, budismo, sikhismo).

Isso não significa que ideias sobre o que ocorre após a morte não possam surgir em religiões sem esse foco. Não sendo o judaísmo uma religião dogmática baseada em crenças, judeus individuais podem ter opiniões muito diferentes acerca disso e algumas ideias sobre foram desenvolvidas ao longo da história, como a da ressurreição no mundo vindouro (Talmude) e um mix de reencarnação com ressurreição (Cabala medieval). Mas aqui quero enfatizar a opção mais antiga de todas: aquela da antiguidade judaica incorporada na Bíblia Hebraica, a morte como um ‘descanso eterno’, isto é, nenhuma vida individual após a morte.

Na Bíblia Hebraica, o destino dos mortos é consistentemente tratado como ‘sombrio’ e um ‘ponto final’. De todas as pessoas igualmente, tenham sido boas ou más em vida. O termo ‘sheol’ é usado para designar a ‘casa dos mortos’, o mundo subterrâneo de escuridão total.

Enquanto a ideia do ‘sheol’ tenha relação com a antiga religião mesopotâmica da região, a qual o descrevia em termos mitológicos, em Israel ele assume um contorno diferente. Os escritores bíblicos o tratam mais metaforicamente, como um termo designando a coletividade das ‘sepulturas’ nas quais os mortos se decompõem e meras sombras deles subsistem por algum tempo. Ou seja, nada de consciência individual pós-morte nem alma imortal. Mas sim uma concepção muito material sobre o fim da vida humana, tratada como uma existência orgânica e nada mais que isso. A morte é demitologizada.

Foto do primeiro cemitério judaico do Brasil, que funcionou de 1842 a 1915, no centro de Belém do Pará.

Geralmente essa concepção está implícita. O destino de alguém após a morte sequer é cogitado. Nós simplesmente vemos uma sucessão de vidas e gerações. Pessoas indo e vindo numa história comunitária. A grande questão é a persistência da comunidade. O indivíduo morre, mas a comunidade permanece — e assim permanece também o seu legado para a continuação dessa história.

Mas em alguns trechos isso é tornado mais explícito. Em especial em evocações poéticas, por exemplo, discutindo a impossibilidade dos mortos louvarem a Deus. Alguns versículos:

“Os mortos não louvam ao Senhor, nem os que descem ao silêncio.” (Salmos 115:17)

“Porque na morte não há lembrança de ti; no sepulcro quem te louvará?” (Salmos 6:5)

“Porque não te louvará a sepultura, nem a morte te glorificará; nem esperarão em tua verdade os que descem à cova.” (Isaías 38:18)

“Por que não morri eu desde a madre? E em saindo do ventre, não expirei? [..] Porque já agora jazeria e repousaria; dormiria, e então haveria repouso para mim.” (Jó 3:11–13)

“Com o suor do seu rosto você comerá o seu pão, até que volte à terra, visto que dela foi tirado; porque você é pó e ao pó voltará”. (Gênesis 3:19)

“dormem no pó da terra” (Daniel 12:2)

A descrição mais vívida da finitude da existência encontramos em Eclesiastes, um livro de sabedoria, que extrai desse limiar final algumas recomendações para a única vida que temos:

“Porque os vivos sabem que hão de morrer, mas os mortos não sabem coisa nenhuma, nem tampouco terão eles recompensa, mas a sua memória fica entregue ao esquecimento.
Também o seu amor, o seu ódio, e a sua inveja já pereceram, e já não têm parte alguma para sempre, em coisa alguma do que se faz debaixo do sol.
Vai, pois, come com alegria o teu pão e bebe com coração contente o teu vinho, pois já Deus se agrada das tuas obras. Em todo o tempo sejam alvas as tuas roupas, e nunca falte o óleo sobre a tua cabeça.
Goza a vida com a mulher que amas, todos os dias da tua vida vã, os quais Deus te deu debaixo do sol, todos os dias da tua vaidade; porque esta é a tua porção nesta vida, e no teu trabalho, que tu fizeste debaixo do sol.
Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças, porque na sepultura, para onde tu vais, não há obra nem projeto, nem conhecimento, nem sabedoria alguma.” (Eclesiastes 9:5–10)

*Isaías 26:19 emprega a ideia de ressurreição, mas o contexto é ambíguo, por ser mais metafórico; além de existirem questões envolvendo a datação tardia da inserção deste trecho no livro de Isaías. (Veja também Ezequiel 37:12–13 para um similar uso metafórico)

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A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.