[28] A Bíblia Hebraica NÃO se preocupa com a salvação individual da alma

A Estrela da Redenção
4 min readJul 9, 2020

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Dado o post anterior, sobre a ausência da vida após a morte na Bíblia Hebraica, muita gente talvez se pergunte: ‘ok, mas porque os escritores bíblicos não simplesmente consolaram as pessoas dizendo que elas ganhariam o céu ou reencarnariam em melhores condições após suas mortes?’ Afinal, os profetas israelitas tiveram de lidar com situações pesadíssimas, a ameaça de extinção de seu próprio povo entre elas. Eles poderiam ter se consolado em dirigir seus pensamentos para uma possível existência pós-morte.

O problema é que, mesmo se uma crença assim resolvesse a angústia individual, ela não resolve a questão da persistência comunitária, nem a da justiça social nesse contexto coletivo. Os profetas, e os escritos da Bíblia Hebraica como um todo, têm um foco na vida de COMUNIDADES HUMANAS INTEIRAS. Eles consideram essa a real QUESTÃO. Como estabelecer JUSTIÇA para os injustiçados e AMOR entre as pessoas de modo a se construir uma convivência comunitária ótima NESTE mundo.

Building a Future Together, Clem Hall.

O teólogo luterano neo-ortodoxo Dietrich Bonhoeffer, um importante pensador para o existencialismo cristão* (e para o existencialismo bíblico num geral, o judaico também), elaborou essa questão em suas cartas da prisão. Ele fora preso pela participação em um atentado para matar Hitler, e por fim foi executado pelo regime nazista. Mas na prisão ele formulou uma perspectiva extraordinária.

Bonhoeffer na prisão passou a ler mais o ‘Velho’ Testamento (a Bíblia Hebraica) e ali encontrou uma perspectiva muito mais mundana, muito mais secular, e, por conseguinte, muito menos ‘religiosa’ para encarar a vida.

Com base numa interpretação mais baseada no ‘Velho’ Testamento para o cristianismo (e interpretando o Novo Testamento com base no ‘Velho’, ao invés do contrário como é muito comum no cristianismo), ele anteviu um ‘cristianismo não-religioso’, que se baseia na vida AQUI E AGORA, e em como construir uma comunidade humana baseada no amor e na justiça NESTE MUNDO.

Como ele chegou nessa conclusão? Bonhoeffer percebeu que a perspectiva ‘religiosa’ comum na cristandade, definida por uma preocupação metafísica e individualista com a salvação individual da alma, simplesmente NÃO APARECE na Bíblia Hebraica:

“A pergunta individualista pela salvação pessoal da alma não desapareceu quase completamente de nossa visão? Não temos realmente a impressão de que existem coisas mais importantes do que essa pergunta (- talvez não mais do que esse assunto, mas sim mais do que essa pergunta!?)?

Sei que dizer isso parece bastante monstruoso. Mas, no fundo, não seria até mesmo bíblico? A questão da salvação da alma ocorre em algum lugar do Antigo Testamento? O centro de tudo não são a justiça e o Reino de Deus na terra? […] O que está em pauta não é o além, mas este mundo e como ele é criado, conservado, estruturado em leis, reconciliado e renovado.” (Bonhoeffer, carta de 1944, edição brasileira “Resistência e Submissão: cartas e anotações escritas na prisão”, 2003, p. 380)

Então, sim, as pessoas secularizadas dos tempos modernos estão corretas: parece que há coisas muito mais importantes do a preocupação com uma suposta ‘salvação individual da alma’. Mas, na verdade, isso seria bíblico! O erro do cristianismo foi ter se afastado do judaísmo nisso. A questão central da Bíblia Hebraica NÃO é a salvação individual da alma, mas a justiça e o Reino de Deus na terra.

E o judaísmo preservou esta perspectiva:

“Muitas são as nascentes que propiciaram o florescer da vida judaica. A fé na Torá enfatiza mais o significado do que a mágica, mais o bem-estar terreno do que a reclusão espiritual, mais a vibração e crescimento comunitários do que a salvação individual, mais raciocínio do que salto de fé, mais ação do que crença, mais ‘vitaminas’ do que ‘tranquilizantes’. […]

A ética judaica fala de meiguice e benevolência, mas alardeia uma moralidade forte que nunca volta a outra face. […] Moisés saiu de sua residência no palácio do faraó, viu dois homens brigando, intercedeu e golpeou um deles em nome da justiça. Portanto, a presença judaica perpetua-se, e por toda parte, na linha de frente à cada movimento pelo progresso social, em toda revolução importante, em cada país de seu exílio, desde o antigo Egito dos hicsos até o movimento pelos direitos civis no Alabama rural.” (Maurice Lamm, “Bem-vindo ao Judaísmo: retorno e conversão”, 1998)

*Apesar de suas críticas ao uso de existencialismo em teologia (em especial por parte de seu colega Rudolf Bultmann), a maneira como Bonhoeffer pensa o cristianismo e a Bíblia em termos existenciais o coloca no contexto do existencialismo, mesmo que ele não seja estritamente um teólogo existencialista.

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Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.