[32] Exagero Profético como Sensibilidade à Injustiça [Heschel]

A Estrela da Redenção
4 min readJul 19, 2020

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Uma coisa que pode ter chamado atenção em relação aos profetas, com sua extrema sensibilidade ao mal e à injustiça, é que eles são dados ao exagero. Mas hoje tendemos a associar o exagero com a mentira ou pelo menos com a deturpação da verdade. Veja por exemplo:

“Percorrei as ruas de Jerusalém, averiguai, buscai por todas as suas praças; e se encontrardes um homem que aja com justiça e busque praticar a verdade, Eu a perdoarei.” (Jeremias 5:1)

Se um ÚNICO homem for encontrado que de fato pratique a justiça e faça o bem, o decreto divino de destruir Jerusalém será anulado! Será que é tão difícil assim encontrar na capital da nação um único caso de uma pessoa justa? O pressuposto aqui é que será impossível achar um, então o decreto não será anulado… E isso parece exagerado.

(Curiosidade: isso lembra algo que 2 séculos e meio depois o filósofo cínico Diógenes fará nas ruas de Atenas, carregando uma lâmpada durante o dia e alegando estar procurando por um homem honesto — os profetas israelitas que viveram 3–4 séculos antes dele eram cheios desses atos simbólicos, como Isaías que andou nu e descalço, Jeremias que vestiu um jugo de boi e Oséias que casou e recasou com uma mulher adúltera)

Diogenes sucht einen Menschen” [Diógenes Procurando por um Homem Honesto], atribuído a Johann Heinrich Wilhelm Tischbein, circa 1780.

Mas o exagero profético não deve ser visto como deturpação da verdade. Há uma verdade profética que subjaz ao exagero. O existencialista judaico R. Heschel comenta que às vezes as denúncias são limitadas aos mais poderosos, implicando a inocência daqueles não envolvidos na liderança (o que parece mais acurado), mas em outros casos fala-se como se o povo inteiro fosse cheio de opressão continuamente, beirando o inacreditável:

“o SENHOR tem uma contenda com os habitantes da terra; porque na terra não há verdade, nem benignidade, nem conhecimento de Deus. Só permanecem o perjurar, o mentir, o matar, o furtar e o adulterar; fazem violência, um ato sanguinário segue imediatamente a outro.” (Oséias 4:1,2)

Vemos nos profetas uma postura muito singular. Heschel comenta que os grandes oradores romanos manifestavam grande coragem ao publicamente condenar o abuso do poder por indivíduos específicos. Mas os profetas simplesmente desafiam o próprio país como um todo: reis, sacerdotes, os falsos profetas, a nação inteira! O que poderia motivar alguém a fazer algo assim? Andar na contramão, CONTRA todos para estar A FAVOR do povo?

É que, segundo R. Heschel, os profetas compartilham a perspectiva de Deus. Seu ponto não é sobre os fatos, mas sobre o significado deles. O exagero retórico é uma ferramenta bíblica que ressalta a significância das ações humanas e o real peso da existência humana, algo não captado por estatísticas. Nossos atos importam; e importam muito.

Aqui o filósofo nos lembra que não podemos culpar de exagero os rabinos do Talmude quando eles afirmam que “quem salva uma única vida, salva o mundo inteiro, mas quem destrói uma única vida, destrói o mundo inteiro.” (vide Tratado Sanhedrin 37a)

Então o exagero profético, para Heschel, deriva de uma apreciação profunda da interconexão de nossos atos, de comparar o estado real da sociedade com aquilo que a comunidade poderia ter sido e poderia ser, não fosse a estrutura cultural que nos condiciona à indiferença. “Alguns são culpados, mas todos são responsáveis.” (p. 19)

Se definirmos verdade como a conformidade da afirmativa com os fatos, os profetas de fato tem problemas de acurácia. Mas quando definimos a verdade “como a realidade refletida na mente, a verdade profética consiste na realidade como refletida na mente de Deus” (p. 18).

Ver e sentir as coisas da perspectiva de Deus é a tarefa ‘impossível’ que os profetas, humanos que são, assumem, e disso decorre o ‘exagero’. Afinal, como nos diz Habacuque:

“O peso que viu o profeta Habacuque. Até quando, Senhor…., gritar-te-ei: Violência! e não salvarás? Por que razão me mostras a iniqüidade, e me fazes ver a opressão? Pois que a destruição e a violência estão diante de mim…. Tu és tão puro de olhos, que não podes ver o mal, e a opressão não podes contemplar. Por que olhas para os que procedem aleivosamente, e te calas quando o ímpio devora aquele que é mais justo do que ele?” (Habacuque 1:1–3, 13)

Para Deus, que é tão puro de olhos, ver o mal é terrível. Como posso então eu, o seu profeta, continuar a ver o mal depois que fui impactado em todo o meu ser por essa mesma Divina Presença? Como sentir o mundo da perspectiva de Deus e continuar aceitando que a crueldade e a injustiça prevaleçam?

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Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.