[34] Deus Sente? Antropopatia versus Antropomorfismo[Heschel]
Como vimos no post anterior, o existencialista judaico R. Abraham Heschel discute o ‘pathos’ profético como um identificar-se do profeta para com os sentimentos divinos e encarar a totalidade da existência da perspectiva divina.
Com isso ele enfatiza um aspecto crucial da mensagem profética em particular e da Bíblia Hebraica como um todo: Deus é imaginado como tendo sentimentos, é retratado como possuindo atitudes.
Por conta da tradição filosófica helênica, tornou-se comum pensar em Deus como um ser inatingível, que não pode ser afetado, para sempre fora do espaço e do tempo. Afinal, não é Ele onipotente?
Mas, Heschel nos diz, para o profeta Deus não revela a si mesmo como um Absoluto Abstrato, e sim numa relação íntima e pessoal para com o mundo. Assim, Ele não simplesmente ordena coisas e espera obediência. Ele é MOVIDO e AFETADO pelo que acontece no mundo. Ações e eventos humanos suscitam nele alegria ou desamparo, prazer ou ira.
“Ele [Deus] reage de uma maneira íntima e subjetiva, e então determina o valor dos eventos. Bastante obviamente na visão bíblica, as ações do homem podem movê-lo, afetá-lo, incomodá-lo ou, por outro lado, torná-lo feliz e alegrá-lo. Essa noção de que Deus pode ser intimamente afetado, que Ele possui não meramente inteligência e vontade, mas também pathos, é o que basicamente define a consciência profética de Deus.” (p. 289, edição 2001, “The Prophets”)
Aqui é importante não confundir ‘pathos’ com sentimentos irracionais descontrolados. Para entender o que os profetas querem dizer precisamos resistir à associação necessária entre sentimento e irracionalidade. O ‘pathos’ fornece motivos, motivação. Mas é direcionado a um ‘ethos’, isto é, possui parâmetros. Os sentimentos divinos seguem um padrão de justiça e misericórdia.
E tal pathos não deve ser entendido nos termos de uma teoria geral sobre Deus. O pathos não é um atributo fixo, ele representa uma situação, ‘de Deus para conosco neste momento’. Trata-se de um EVENTO, um acontecimento, ou da interpretação de eventos e acontecimentos. O pathos não pode ser colocado em categorias objetivas, destacadas que permitiriam ‘controlá-lo’.
Essa discussão feita por Heschel é um caso específico de uma grande discussão em teologia e filosofia sobre a ‘antropomorfização’ da figura divina. Por exemplo, na Bíblia Hebraica fala-se de Deus como tendo braços, mão, segurando uma espada, etc. Poderíamos comparar isso com os deuses da mitologia grega, como Zeus e Atena, que também são assim retratados.
Mas R. Heschel entende que na verdade o aspecto crucial dos profetas não é o antropomorfismo, onde Deus teria forma humana, mas sim uma antropopatia, onde Deus expressa sentimentos humanos. É essa identificação de sentimentos que permite à pessoa impactada pela presença divina (o profeta) sentir os sentimentos de Deus como se fossem os seus próprios sentimentos.
Agora, alguém poderia perguntar: mas os gregos também não pensavam nos seus deuses como tendo emoções humanas? Sim, eles pensavam assim, por exemplo, Zeus também se irrita, se alegra, e assim por diante. A diferença entre o Deus bíblico e os deuses gregos está no fato de que o Deus bíblico tem seus sentimentos subordinados à justiça. Não encontramos traço de maldade ou defeitos de caráter nos sentimentos divinos que os profetas expunham.
Um ponto que isso me faz refletir (indo além de Heschel) é que, enquanto hoje em dia essa associação entre o divino ‘pessoalizado’ e seu ser totalmente justo e santo acabe sendo muito automática para nós, essa não é a maneira mais comum de historicamente pensar isso. Precisamos tornar de novo ‘compreensível’ a sua motivação, ao invés de ‘compreende-la’ mecanicamente.
Em outras grandes religiões mundiais e na filosofia grega, a ‘solução’ foi ‘impessoalizar’ a divindade para poder enfatizar a motivação ética na religião (colocada assim fora dos caprichos dos deuses). Mas no povo judeu a resposta foi imaginar uma pessoalização que ao mesmo tempo é inteiramente ética. É o sentido profundo por trás de falar do Deus ‘pessoal’.
A questão não é sobre Deus SER pessoa em termos teóricos, mas sobre a nossa relação com o divino ou com a transcendência ser imaginada como PESSOAL em termos existenciais. É isso que permite falar em compartilhar dos sentimentos tidos pelo outro pólo da relação, de encarar outra perspectiva perante a qual a nossa é para sempre aquém em justiça e bondade.
Algumas pessoas retrucam: “mas existe mesmo tal perspectiva divina com a qual podemos nos relacionar?” Isso já é errar a questão, ‘objetivá-la’, o contrário do que os profetas fazem.
A questão é que imaginar um pathos de bondade e justiça absolutas NOS MOTIVA ABSOLUTAMENTE (ou tem o poder de assim motivar quando estamos adequadamente receptivos). Isso ocorre mesmo que nunca o possamos realizar completamente (e, assim, ‘comprová-lo’). Nós somos movidos por tal pathos e tal ethos, um pathos e um ethos que por sua vez são afetados por nós. E isso basta.
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