[36] O Choro de Deus na Tradição Judaica

A Estrela da Redenção
3 min readJul 30, 2020

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Segundo o profeta Jeremias, como observamos no post anterior, Deus chora. Esse tema do ‘Deus choroso’ não passou desapercebido na tradição judaica e foi por esta explorado em diversas ocasiões.

No Talmude, o tratado Chagigah 5b discute o primeiro versículo que mencionei no post anterior, Jeremias 13:17 (“E, se isto não ouvirdes, a minha alma chorará em lugares ocultos, por causa da vossa soberba…”).

Ali os rabinos discutem o choro de Deus. Um deles afirma que o Santíssimo tem um lugar para chorar. Outros discutem o que seria a soberba pela qual Deus chora: o orgulho do povo judeu, tomado deste e dado a outras nações, ou o orgulho do Reino dos Céus, que se retirou do mundo.

A Guemará prossegue, problematizando: será que Deus chora? Aqui é mencionada a opinião de um sábio segundo o qual não há nenhuma tristeza no Santíssimo, por referência a 1Crônicas 16: 27. Mas a própria Guemará faz a conciliação: Deus chora nas ‘câmaras mais internas’ mas não chora nas ‘câmaras exteriores’. Ou seja, o choro de Deus é ‘secreto’. Nós não o vemos. Mas Deus se ‘recolhe’ sozinho e ‘ali’ Ele chora.

Nessa mesma dialética (o Talmude funciona assim), ainda poderíamos questionar se Deus às vezes chora abertamente. Dessa vez a Guemará cita Isaías 22:12 (“E o Senhor DEUS dos Exércitos, chamou naquele dia para chorar e para prantear, e para raspar a cabeça, e cingir com o cilício”).

E isso é respondido também: na destruição do Templo foi um momento diferente, mesmo os anjos da paz choraram (por referência a Isaías 33:7; “Eis que os seus embaixadores estão clamando de fora; e os mensageiros de paz estão chorando amargamente”).

A destruição do Templo (que no Tishá BeAva de ontem para hoje foi relembrada), entendido como o lugar onde Deus realmente ali residia, significava que, aparentemente, Deus fora derrotado e mesmo destruído. De fato, representava algo que beirava a morte de Deus. Mas o mais incrível é que Deus Ele mesmo havia decretado essa destruição.

Então, a sensação que alguém poderia ter à época é que Deus tinha enlouquecido, decretando seu próprio suicídio! Por conta da injustiça, não só os injustos foram castigados, Deus ‘castigou’ a si mesmo. Nesse raro momento Deus chorou abertamente…

“An Exceptional Occurrence” [Uma Ocorrência Excepcional], Eileen Agar, 1950

E depois disso outras discussões se seguem, como quais seriam o significado das três referências a lágrimas, e os três tipos de pessoas por quem Deus chora TODOS OS DIAS (entre essas três estão inclusos os líderes que oprimem a comunidade).

Já no midrash de Lamentações Zuta 139 (referido no paper God and Suffering in Heschel’s Torah Min Ha-Shamayim, por Geoffrey Claussen) comenta-se o segundo trecho mencionado no post anterior, Jeremias 8:21 (“Estou quebrantado pela ferida da filha do meu povo; ando de luto; o espanto se apoderou de mim”).

Aqui Deus é mencionado como dizendo:

“Porque o meu povo está despedaçado, Eu estou despedaçado; Eu estou deprimido, apanhado pela desolação.”

Já o tratado Mishash Sanhedrin 6 expande essa questão afirmando que quando uma pessoa sofre, a Shechiná (a Santíssima Presença Divina) sofre também: ela diz que ‘dói’ na sua cabeça e no seu braço. (Aqui o ‘doer’ sentido pela Shechiná é referido por um eufemismo, ‘sente leve’ que na verdade quer dizer o contrário)

E como o contexto da discussão era a aplicação da pena de morte para criminosos (que como já comentei em post antigo, foi seriamente limitada dentro da tradição judaica pela interpretação feita há 2 milênios atrás), o Talmude prossegue dizendo: se Deus fica tão entristecido quando o sangue do ímpio é derramado, quanto mais Ele deve ficar quando o sangue dos justos é derramado!

Ou seja, Deus não chora só pelo sofrimento dos justos. Ele também se sente muito mal mesmo pelo sofrimento dos injustos!

E não, isso não são interpretações ‘modernas’, de alguém na modernidade querendo ‘fazer o Deus do ‘Velho’ Testamento parecer mais bonzinho’. Essas discussões foram feitas há quase DOIS MILÊNIOS ATRÁS, baseando-se nos profetas de MAIS DE DOIS MILÊNIOS E MEIO ATRÁS. A EXTREMA simpatia e empatia de Deus pelo sofrimento humano é um tema antigo na Bíblia Hebraica.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.