[37] Os Profetas Israelitas Eram Fanáticos Intolerantes?

A Estrela da Redenção
4 min readAug 2, 2020

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Dentro do profetismo israelita clássico, que tenho discutido desde o post [18], uma coisa que ainda não pode ter ficado clara é a seguinte: “ok, já deu para entender como os profetas tinham uma extrema sensibilidade à injustiça, mas o que a questão da idolatria e da adoração exclusiva ao Deus de Israel tem a ver com isso? Também não era essa uma questão dos profetas?”

Essa indagação geralmente é feita por pessoas que se entendem como mais ‘tradicionalistas’, que suspeitam que enfatizar a questão da injustiça nos profetas é apenas uma maneira de ‘soar moderno’.

Nós já vimos em vários posts que essa impressão é totalmente errado. Os livros proféticos (e a Bíblia Hebraica num geral) tem a justiça social como um de seus grandes temas. O ‘velho’ livro É um livro político.

Mas esse indagador tem um ponto quando ele questiona que, talvez, ao não comentar sobre a questão da idolatria contra o qual os profetas se levantaram, estaríamos omitindo uma dimensão importante de sua mensagem que soa para os ouvidos modernos como algo mais ‘intolerante’. Pois bem, vamos analisar isso neste próximo e nos que se seguirão.

Existe uma caricatura (compartilhada por religiosos ‘tradicionalistas’ que endossam isso e neo-ateus que repugnam isso) de que os profetas eram fanáticos religiosos. Eles seriam intolerantes com ‘outras religiões’, e por isso queriam banir à força os cultos dos outros deuses que haviam na terra de Israel. Seu grande sonho era o governo banir essas outras religiões, para promover o culto exclusivo ao deus YHWH como o Deus supremo.

Segundo essa visão, as conversões forçadas feitas para o cristianismo em nome da Bíblia seriam uma extensão natural do fanatismo dos profetas, que também queriam converter populações inteiras à força…

“Remorse, or Sphinx Embedded in the Sand” [Remorso, ou a Esfinge Incorporada na Areia], Salvador Dalí, 1931.

Mas a menção ao cristianismo já dá a pista de onde está o equívoco disso… Tendemos a imaginar os profetas como cristãos exaltados de um passado pré-cristão. Mas o cristianismo tem duas características que o profetismo não tinha: 1) o proselitismo militante baseado na necessidade de ‘salvar’ os outros povos; 2) a elaboração de doutrinas específicas que precisam ser ‘cridas’.

Obviamente os profetas não eram pessoas modernas, e não vamos encontrar nele o tipo de tolerância religiosa moderna, isto é, individualista. A questão para eles era sobre um povo específico manter o culto específico do ‘seu’ Deus.

Enquanto os profetas falam que Deus julga os outros povos também, Deus não cobrava desses outros povos um culto exclusivo e nem mesmo que o adorassem sob o nome — YHWH — revelado aos israelitas. “Que o Meu Nome seja exaltado entre as nações”, sim. “Ide e convertei toda criatura”, não.

Mas o Deus dos profetas cobrava do povo de Israel/Judá esse culto exclusivo pois este o ‘conhecera’, isto é, a origem deste povo proveio de uma aliança de seus ancestrais com esse Deus, aliança esta que envolvia adoração exclusiva a Ele. A origem da nação está nesse pacto, e por isso o compromisso de fidelidade, pensado semelhante a um casamento.

De um ponto de vista historiográfico, podemos questionar o quão acurado estavam os profetas sobre as origens históricas de seu povo; mas considerando seu auto-entendimento à luz de tradições prévias, é bem claro que a questão deles não era intolerância religiosa, e sim preservação cultural (não apenas no sentido mais ‘conservador’ de manutenção, mas também no sentido ‘reconstrutivista’ de sua atualização e reelaboração).

Nesse sentido, o profeta Jeremias chega a questionar:

“Pois, passai às ilhas de Quitim, e vede; e enviai a Quedar, e atentai bem, e vede se jamais sucedeu coisa semelhante. Houve alguma nação que trocasse os seus deuses, embora falsos, por outros? Todavia o meu povo trocou a sua glória por aquilo que é de nenhum proveito.” (Jeremias 2:10,11)

Se as nações em geral são fiéis aos seus deuses (mesmo se não forem reais), quanto mais o povo hebreu deveria ser aos seus ‘deuses’ (Elohim, o nome geral usado para Deus que é na verdade um plural, ‘deuses’), com a diferença que os ‘deuses’ de Israel são apenas aquele único chamado por meio do Tetragrama (YHWH), um nome próprio. Este era o raciocínio dos profetas.

Por fim, note que a questão também NÃO é sobre doutrina e crenças. A questão não era sobre a ‘religião’ dos israelitas, entendido como seu conjunto de crenças sobre a divindade. Era perfeitamente possível acreditar na existência dos outros deuses dos outros povos e no Deus do povo de Israel.

Também não há nos profetas nenhum conjunto de crenças definidas que devessem ser adotadas como ‘dogmas’. Eles falam muito de ações, em especial de natureza POLÍTICA e SOCIAL, mas nada de crenças. Compare isso com as brigas no início do cristianismo quanto à correta definição da Trindade e da dupla natureza de Jesus, para um enorme contraste.

Então, devemos ser cuidadosos em usar os profetas para extrapolar uma doutrina geral da relação entre a Bíblia e outras religiões. Eles não tinham tal doutrina geral, e nem era sua pretensão fazer uma.

Eles falam de um contexto religioso específico do oriente médio dos séculos 8º ao 6º AEC. Eles não pensaram no hinduísmo, no budismo, no jainismo, no confucionismo, no taoísmo, no xintoísmo, nas religiões africanas subsaarianas e nativo-americanas. Na verdade, fora o ‘hinduísmo’ dos Vedas (o que exclui por exemplo o Bhagavad Gita), nenhuma delas sequer existia naquele tempo. E por extensão nunca imaginaram que algum dia alguém iria querer usar o que eles escreveram para lidar com coisas das quais eles nunca tinham ouvido falar…

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.