[38] A Conexão entre Idolatria e Injustiça nos Profetas Israelitas
Como vimos no post anterior, algumas pessoas tradicionalistas desconfiam que enfatizar a luta dos profetas contra a injustiça social (como tenho feito em diversos posts aqui do blog, inclusive dentro do existencialismo judaico de Abraham Heschel) é querer ‘soar’ moderno.
Afinal, pensam tais pessoas, uma grande parte da discussão dos profetas dizia respeito a cultuar o Deus único de Israel (nomeado pelo Tetragrama Sagrado) versus os outros deuses dos povos circundantes, mas uma mensagem tão religiosa soa intolerante para os ouvidos modernos.
Naquele post mostrei um aspecto em que essa acusação é inadequada: ela tende a projetar frameworks históricos do cristianismo (ou mesmo do islamismo), em termos de uma missão expansionista impositiva de crenças religiosas, sobre o contexto dos profetas israelitas, o qual na realidade envolvia um gesto mais de preservar e reformar práticas comunitárias já existentes. Não me alongarei mais nisso aqui.
Entretanto, a queixa do tradicionalista precisa ser confrontada diretamente. Ao contrário do que os tradicionalistas acham, a crítica da injustiça social é sim a peça central para entender os profetas.
Muitos tradicionalistas não negam que os profetas criticam a injustiça. Mas eles erroneamente supõem que os profetas se preocupam primeiro em defender a religião verdadeira, para depois dizer ‘então vejam, vocês estão pecando contra os ditames religiosos’. Nessa visão a crítica à injustiça teria um papel secundário, pois o mais importante seria a visão religiosa dos profetas na defesa do monoteísmo.
O erro desse raciocínio é que a questão da justiça social nos profetas bíblicos não é um epílogo das críticas deles ao culto dos ‘outros deuses’ ou da defesa deles de um único Deus para Israel. Ao contrário, tais críticas à idolatria e essa ênfase na unicidade divina ocorrem em razão da centralidade da justiça para o pensamento profético. Como é para o humano ser justo? Como é para o divino ser justo? Afinal, como é ser justo?
Assim, existe uma ligação central entre as críticas proféticas à idolatria e à injustiça, no qual a defesa do culto a um único Deus é uma função da busca pela justiça na comunidade.
Duas razões conectam idolatria e injustiça no contexto do profetismo israelita clássico:
- O motivo para ser condenável ao povo de Israel/Judá o culto dos outros deuses é que havia um pacto com o Deus único de Israel. Esse pacto estabelecia obrigações de ambas as partes. Se seria injusto que o Deus de Israel descumprisse a sua parte do pacto, também o é se o povo hebreu descumpre a sua. Isso é espelhado na quebra de pactos dos indivíduos entre si e das nações entre si. Por exemplo, no adultério temos a quebra de um pacto entre pessoas humanas que é injusta por parte de quem o cometeu contra a pessoa que a sofreu.
- As práticas envolvidas no culto aos ‘outros deuses’ (e que também foram transpostas para o culto do Deus de Israel) envolviam ‘comprar’ o favor da divindade. Era como se o divino pudesse ser subornado. Então o divino juiz (seja os outros deuses seja o próprio Deus de Israel convertido em ídolo) seria subornado para não olhar nossos delitos e nos recompensar como se assim o devêssemos ser. Isso é espelhado nos mandamentos profundamente sociais de proibir os juízes de receberem suborno, proibir as testemunhas de dar falso testemunho contra o inocente, e determinar a administração imparcial da justiça, mesmo para aqueles incapazes de subornar o sistema, como os necessitados, os órfãos e as viúvas. Ainda mais forte: especialmente em favor destes vulneráveis que pouco ou nada podem dar em troca.
Nos próximos 2 posts analisarei cada uma dessas razões que, penso eu, mostrarão claramente como mesmo o aspecto mais aparentemente religiosa da mensagem dos profetas israelitas era de cunho profundamente sociopolítico. Por assim dizer, o tal monoteísmo, o Deus único dos profetas israelitas, surge da pretensão de que UMA seja a justiça outorgada para todos, sejam grandes ou pequenos…
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