[39] A Injustiça na Idolatria: Descumprindo Pactos (nos Profetas)

A Estrela da Redenção
4 min readAug 8, 2020

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No post anterior comentei que temos duas razões principais para pensar que, no profetismo israelita clássico (representado nos livros proféticos da Bíblia Hebraica), a questão central contra o qual os profetas se levantaram foi a injustiça, INCLUSIVE quando eles condenam a idolatria e pleiteiam em favor da adoração do Deus único de Israel.

Neste post desenvolverei a primeira razão pela qual os profetas encontravam injustiça na idolatria e assim a condenavam: o descumprimento de um pacto.

Pessoas de qualquer background (inclusive distante da Bíblia) podem considerar que a justiça tem a ver com o cumprimento de pactos que fazemos com as outras pessoas. No famoso mote do Direito Romano, ‘justiça é a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu’ (‘Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi’, Ulpiano — jurisconsulto romano que viveu entre 150 e 223 AEC).

No contexto do Direito Internacional contemporâneo, um dos princípios gerais desse ramo do Direito (aceito por toda a comunidade internacional, e, assim, por países de backgrounds culturais muito diversos) é o ‘Pacta sunt servanda’, ‘os pactos devem ser cumpridos’. Não existe um governo mundial que imponha a lei entre os Estados. Mas PELO MENOS os pactos entre os Estados devem ser cumpridos — essa é a lei internacional mínima para uma convivência justa entre os povos. (Hoje em dia complementada por considerações de direitos humanos e Direito Humanitário)

Milênios antes do nosso Direito Internacional contemporâneo e do próprio Império Romano, as antigas civilizações do Crescente Fértil (no Oriente Médio), entre as quais surgiu o povo hebreu/judeu, já tinham essa noção de pactos entre diferentes povos e governos, o que na Bíblia Hebraica aparece como ‘Brit’ (ברית), traduzido como ‘aliança’.

Uma das maiores descobertas da pesquisa bíblica acadêmica é a similaridade da ‘brit’ entre Deus e seu povo como retratada na Bíblia Hebraica com os tratados de susserania e vassalagem no reino Hitita (na região que hoje é a Turquia) do 13º século antes da era comum (isto é, há 3.300 anos atrás). (Outra comparação feita nesse campo é com os tratados do império neo-assírio do sétimo século AEC)

Mapa dos antigos Reinos e suas zonas de influência, incluindo o Império Hitita.

Joshua Berman destaca cinco similares entre a ‘brit’ encontrada na Torá e tais tratados de susserania e vassalagem do antigo reino Hitita: 1) um preâmbulo histórico; 2) lista de direitos, responsabilidades e o domínio de autoridade de cada parte do pacto; 3) o depósito da aliança no templo; 4) convocação de testemunhas; 5) uma lista de bênçãos por manter o acordo e maldições por violá-lo.

Império Hitita em seu apogeu no 13º século, tradução da versão original em inglês.

No caso da ‘brit’ entre Deus e seu povo, que os profetas pressupunham ter ocorrido no passado remoto, uma das cláusulas era que o povo de Israel/Judá havia se comprometido a adorar somente a YHWH (o nome próprio e exclusivo de Deus), excluindo o culto a quaisquer outros deuses (como Baal, Astarte, Moloch, etc.). (Vide o post [16] para a centralidade da aliança na visão judaica sobre o relacionamento entre Deus e a humanidade)

Ou seja, a relação entre Deus e a seu povo é similar com a de um pacto entre diferentes nações. Se é injusto que uma nação descumpra o pacto que fez com outras, também é injusto que seja o povo descumpra seu pacto com Deus seja Deus que descumpra o pacto com seu povo.

E, assim, a prática de idolatria pelo povo hebreu se mostra como a violação de um pacto específico, que vincula este povo a esse Deus. Se Deus resolvesse mudar o povo contemplado no pacto, isso também seria uma violação injusta desse acordo. Então, há aqui uma reciprocidade entre Deus e o povo de Israel.

A obrigação de não praticar idolatria como os outros povos fazem (e podem fazer, por não estarem no acordo) é compensada pelo benefício que o pacto deu aos israelitas: terem sido um povo separado e criado pelo próprio Deus, que lhes deu uma terra específica com leis específicas que os permitiriam viver bem ali, viver bem em qualquer outro lugar do mundo se fosse necessário sair daquela terra, e assim se tornar o povo eterno. As potências imperialistas que brigam por mais terras e mais poder passarão; mas o povo de Deus, por menor e mais fraco que seja, permanece para sempre.

Portanto, seria justo cobrar dos israelitas esse culto único porque isso está respaldada por uma ‘brit’, por um pacto. E ao mesmo tempo essa proibição de adorar outros deuses tem uma contrapartida, aos israelitas não foi pedido que assim se conduzissem ‘de graça’.

O grande diferencial do pensamento profético, que marcou a Bíblia Hebraica como um todo, é que não só o humano é vinculado pela justiça. O divino também o é.

Então, a obediência ao pacto pelos humanos envolvidos (nesse caso, do povo hebreu/judeu) não é unilateral. Deus também tem de obedecer ao pacto. E Ele fará justiça ao seu povo nos termos desse pacto.

É nesse sentido que o comentarista clássico Rashi (1040–1105 da nossa era) comenta Deuteronômio 11:14 (“Então, Eu darei a chuva à tua terra…”), cujo versículo precedente falava da obediência pelos israelitas ao pacto. Nas palavras de Rashi isto significa que Deus diz:

“Vocês façam o que é sua obrigação, e assim Eu farei o que é a minha obrigação.”

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Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.

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