[4] Olho por olho, dente por dente
No ‘Velho’ Testamento está escrito “olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, contusão por contusão” (Êxodo 21:24–25)
É a chamada Lei do Talião (cuja primeira aparição histórica foi no Código de Hamurábi babilônico, também no Oriente Médio), que faz parte da Lei Judaica (Torá). Já no Novo Testamento, no seu sermão da montanha Jesus teria dito:
“Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo que não resistais ao mau; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; E, ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa; E, se qualquer te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas.” (Mateus 5:38–41)
Olhando assim, parece que o ensinamento de Jesus é muito mais ‘avançado’ que o da Bíblia Hebraica. Geralmente se imagina que os judeus ensinavam uma retaliação rígida e corporal, uma cega “violência pela violência” sem fim, e Jesus se contrapôs a esse tipo de regra violenta, introduzindo uma nova lei mais pacífica. Mas examinemos mais de perto….
A tradição judaica DE MILÊNIOS não interpretou o ‘olho por olho, dente por dente’ literalmente. O Talmude, composto por vários tratados, foi escrito entre os séculos II-V, mas compilando diversas discussões, precedentes e interpretações dentro da Lei Judaica dos séculos antecedentes (inclusive de como era aplicado ‘antes de Cristo’, ou ‘antes da era comum’).
Pois bem, os sábios do Talmude interpretaram a Lei do Talião como um princípio sobre INDENIZAÇÃO. Você deve indenizar a alguém exatamente o que você prejudicou a pessoa. Por isso ‘olho POR olho’, uma indenização equivalente pelo olho perdido ou cegado, e assim por diante.
A discussão detalhada disso está no tratado Bava Kamma 83b-88a. Quem agride outro deve pagar cinco indenizações, estimadas por um tribunal: pelo dano, pela dor, pelas despesas médicas, pela perda de subsistência (não poder trabalhar por certo tempo), e pela humilhação.
Os rabinos também discutiram o modo de calcular cada indenização:
1) pelo dano: verificar o valor por quanto a pessoa seria vendida no mercado de escravos se não tivesse nenhum dano e por quanto ela seria vendida agora tendo o dano, a diferença entre estes 2 valores é o valor da indenização;
2) pela dor: a indenização é quanto uma pessoa com uma sensibilidade à dor similar à da vítima aceitaria em dinheiro para sofrer daquela maneira;
3) pelas despesas médicas: todos as despesas desse tipo necessárias até que a pessoa se recupere em definitivo;
4) pela perda de subsistência: o tribunal considera como se a pessoa fosse um vigia de um campo de pepinos e a indenização é o salário que um vigia desses perderia;
5) pela humilhação: depende de quem humilha e de quem é humilhado. (O que hoje chamaríamos de danos morais)
E por que o ‘olho por olho’ não seria literal? Os sábios discutem isso usando vários exemplos hipotéticos. E se uma pessoa cega cegasse uma não cega? Uma pessoa sem braço cortasse o braço de outra? Se a mão de uma pessoa fosse muito menor que a da outra, a ‘mão pela mão’ seria equivalente nesse caso? A conclusão que chegaram (via RACIOCÍNIO) é que a aplicação literal levaria a situações absurdas e, assim, o mais justo é indenização monetária. Relembrando: isso não é uma interpretação moderna; é a interpretação de pelo menos DOIS MILÊNIOS ATRÁS.
Por outro lado, o ensinamento de Jesus é complicado. Primeiro, porque ele parece impedir a legítima defesa (algo que a tradição cristã teve de relegitimar posteriormente). Segundo, e aqui está em contraste direto com a ética judaica, esse princípio não serve para fundamentar a lei de uma comunidade. A ética judaica busca relações sociais mais justas: simplesmente ‘dar a outra face’ não contribui para isso, enquanto exigir uma indenização e/ou se defender quando atacado contribui. Então, esse ensino de ‘dar a outra face’ tem outro contexto (p. ex. o de uma ética ‘apocalíptica’ para o fim dos tempos, ou uma ética de santos individuais etc.).
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