[40] Quebra de Pactos nos Profetas (existencialistas judaicos Heschel e Buber)
O existencialista judaico R. Abraham Heschel em seu livro ‘The Prophets’ (o qual já discuti em outros posts deste blog) traz também uma informação interessante para nos ajudar a entender como essa quebra de pactos era entendida como uma questão de justiça, conforme mostrei no post anterior.
No primeiro capítulo (e início do segundo) do livro do Profeta Amós (o primeiro dos profetas israelitas clássicos, que atuou há mais de 2.770 anos atrás) existe uma lista de maldades cometidas por vários povos. Como tais povos não estão no pacto de adoração exclusiva, os erros desses povos referem-se apenas às injustiças cometidas por eles.
Numa análise dessa lista, R. Heschel chega à conclusão de que são dois os problemas que Deus vê nesses povos: a ausência de lealdade e de compaixão. Por exemplo, Tiro violou o tratado que fez com outro povo (mesmo que esse povo nem seja o hebreu/judeu) e por isso deve ser punido:
“Assim diz o Senhor: Por três transgressões de Tiro, e por quatro, não retirarei o castigo, porque entregaram todos os cativos a Edom, e não se lembraram da aliança dos irmãos. Por isso porei fogo ao muro de Tiro, e ele consumirá os seus palácios.” (Amós 1:9,10)
Heschel conclui: “[…] não havia nenhuma lei em existência governando as relações internacionais. Amós, entretanto, pressupõe a concepção de uma lei que não foi incorporada em um contrato, a concepção de certo e errado que precede cada contrato, desde que todos os contratos derivam sua validade dela.”
O existencialista judaico Martin Buber também ficou intrigado por essa lista e confirma a visão de Heschel. Buber foi um importante filósofo do judaísmo no século XX, muito conhecido pela sua ‘filosofia do diálogo’ e ligado ao neo-hassidismo, um reavivamento do misticismo judaico de fontes hassídicas e cabalísticas dentro do judaísmo não-ortodoxo (enquanto o hassidismo é dentro do judaísmo ortodoxo). Buber inclusive traçou paralelos entre o misticismo judaico e o taoísmo de Lao-Tsé. O neo-hassidismo também foi trabalhado por Heschel, o que mostra a relevância dessa tendência.
Em ‘The Prophetic Faith’ (1949, p. 97) Buber afirma que Deus não julga esses povos com base na iniquidade deles contra Ele, mas na iniquidade que eles cometem uns contra os outros. O tratamento dispensado ao povo hebreu é único no sentido de agregar a dimensão extra da idolatria.
Ou seja, o juiz de todos os povos julga as injustiças de todos, mas julga a idolatria de um único povo apenas: aquele com quem Deus fez uma aliança relativa a esse ponto. Por que é justo que Ele assim proceda? Porque há o respaldo de um pacto.
Inclusive Buber salienta como os outros povos também foram ajudados pelo Deus de Israel, mesmo que a tais benefícios cada um desses povos seja grato ao seu deus nacional específico.
“Não me sois, vós, ó filhos de Israel, como os filhos dos etíopes? diz o Senhor: Não fiz eu subir a Israel da terra do Egito, e aos filisteus de Caftor, e aos sírios de Quir?” (Amós 9:7)
Ou seja, Deus deu benefícios aos outros povos, mas não cobra a adoração exclusiva destes pois não formalizou um pacto com eles. Poderíamos dizer que é quase como se Deus seguisse o princípio da anterioridade da lei penal: “não há crime sem lei anterior que o defina”. No pensamento profético, os outros povos não podem cometer o ‘crime’ da idolatria porque não houve com eles um pacto anterior assim o definindo claramente e exaustivamente.
Assim, fica claro que a questão da adoração exclusiva nos profetas é menos uma discussão geral sobre crença religiosa, e mais sobre a justiça de cumprir com o pactuado. No próximo post veremos que isso vai até mais longe: é uma questão também sobre amor como representado no pacto do casamento e a (in)fidelidade a este pacto íntimo.
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