[41] Oséias o profeta do amor traído

A Estrela da Redenção
4 min readAug 15, 2020

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A briga contra a idolatria, e a conexão desta briga com o respeito aos pactos, aparece bem cedo dentro do profetismo israelita clássico. No post [19] eu comentei sobre Amós, o primeiro profeta israelita clássico. O segundo deles é Oséias, ambos vivendo e atuando no 8º século antes da Era Comum (iniciando sua atuação antes de 740 AEC), há mais de 2.760 anos atrás.

Uma diferença entre Amós e Oséias é que Amós enfatizava a injustiça social e Oséias enfatizava a idolatria, em termos do erro cometido pelo povo. (Mas Oséias também falava da injustiça social bem como Amós da idolatria)

E Oséias enfatizou isso da maneira mais gráfica possível: seguindo uma ordem divina, Oséias casa com uma mulher adúltera/prostituta e é traído por esta várias vezes. Após o divórcio, Deus novamente ordena que a aceite de volta e Oséias a aceita de volta, apesar de todo o adultério cometido. Não acredita que isso está na Bíblia? Os trechos:

“O princípio da palavra do Senhor por meio de Oséias. Disse, pois, o Senhor a Oséias: Vai, toma uma mulher de prostituições, e filhos de prostituição; porque a terra certamente se prostitui, desviando-se do Senhor.” (Oséias 1:2)

“E o SENHOR me disse: Vai outra vez, ama uma mulher, amada de seu amigo, contudo adúltera, como o SENHOR ama os filhos de Israel, embora eles olhem para outros deuses, e amem os bolos de uvas.” (Oséias 3:1)

O diferencial de Oséias em relação a Amós é que, enquanto este último enfatizou a justiça de Deus, Oséias enfatizou o amor de Deus. Deus fez um pacto com os israelitas, e este pacto é comparável a um casamento. O próprio Oséias casar com uma mulher que o trairia, ser traído, terminar o relacionamento mas depois reatar, serve como ilustração da história de amor de séculos entre Deus e seu povo.

Ou seja, como já havia dito no post [18], mais do que uma aliança, há um relacionamento erótico entre Deus e seu povo. Este povo ‘conheceu’ a YHWH. Esse ‘conhecer’ aqui tendo uma conotação erótica, no qual YHWH casa com Israel e tem relações ‘íntimas’ com Israel. Mas como a palavra ‘casamento’ hoje soa como algo frio e padrão, vamos reelaborar assim:

Deus SE APAIXONA pelo povo de Israel quando este era uma jovem moça ainda, e começa a NAMORAR COM MUITO ARDOR essa jovem. Mas com o passar do tempo essa namorada vai esquecendo o primeiro amor e várias vezes TRAI seu namorado (Deus) com vários AMANTES (outros deuses). Ainda assim, por estar apaixonado, Deus nunca a abandona e perdoa de novo e de novo mesmo SOFRENDO com as traições. Mas sua paciência começa a se esgotar, Deus está profundamente irritado com sua namorada e no auge dessa ira jura que NUNCA MAIS VOLTARÁ com ela… Mas um dia essa irritação passará e a traição novamente será perdoada, REATANDO O NAMORO como se fosse a primeira vez que se ‘conheceram’.

Tudo isso deve ser pensado de forma muito vívida, caracterizando aquela antropopatia divina representada no pathos profético de que R. Heschel (um expoente do existencialismo judaico) comenta em seu livro ‘The Prophets’. O Deus sofredor da Bíblia Hebraica, que chora em lágrimas pela infidelidade de seu povo.

“Dolor de mediodía” [Dor do Meio-Dia], Angell Planels, 1932

Ou seja, nos profetas (não somente Oséias, mas também Jeremias, Ezequiel etc.) a prática da idolatria era comparada à prática do adultério. Assim como alguém casado trai sua esposa/esposo por ter relações sexuais com outra pessoa fora desse pacto de fidelidade mútua, um membro do povo hebreu (casado com Deus) trai seu Deus por ter relações de culto com outro deus fora desse pacto de fidelidade mútua.

Isso reforça o ponto que venho trabalhando nos últimos posts. A condenação à idolatria pelos profetas é relacionada com uma regra mais geral de que é injusto quebrar pactos. E indo além do caso de pactos mais comerciais e políticos, isso é pensado em termos dum pacto que envolve muitos sentimentos humanos e a responsabilidade do cuidado tanto do outro pactuante como da prole gerada por ambos: o casamento.

Isto é, ser infiel a relações que se baseiam em amor, confiança, intimidade, etc. é muito errado. E, por isso, também é errado fazê-lo se o outro sujeito da relação for Deus, que com o seu povo (hebreu/judeu) fez um pacto desse tipo e sempre remanesceu fiel a tal pacto.

O mais curioso é que isso ajuda a entender o peso que a Bíblia Hebraica dá para a fidelidade sexual e afetiva. Esse Deus da fidelidade dos profetas contrastava com os deuses que eram cultuados por intermédio da ‘prostituição cultual’ (a realização de atividades sexuais como forma de culto).

A prostituição para fins rituais está em antítese à fidelidade sexual. Uma pessoa casada engajar-se em prostituição ritual para fins de cultuar outros deuses assim traindo sua esposa/esposo é um ato único mas de dupla infidelidade, contra a esposa/esposo e contra o Deus de Israel. E tentar honrar o Deus de Israel por meio da prostituição ritual seria nonsense: o que esse Deus deseja é a fidelidade.

Mas por que? Porque relacionamentos de amor íntimo e profundo entre seres humanos são aquilo que mais representa o caráter divino. Não é à toa que a Bíblia Hebraica possui um livro de poesia erótica no seu meio (o Cântico dos Cânticos). Livro este que o Rabi Akiva no final do 1º século ou início do 2º chamava de “Santidade das Santidades”, o livro ‘santíssimo’ entre os santos livros que compõem as Escrituras (Mishnah Yadayim 3:5).

Se o antigo Templo tinha um lugar ‘santíssimo’, o local de máxima intimidade com a presença divina que o Sumo-Sacerdote só entrava uma vez por ano, o Cântico dos Cânticos com seu retrato ardente do amor erótico humano é este local de máxima intimidade com o divino dentro da Bíblia Hebraica.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.