[42] Bíblia Hebraica: aborto NÃO é assassinato
Certos chavões são tão repetidos no debate público que as pessoas já fazem uma associação automática entre certas ideias. Um desses é o ‘aborto é assassinato’, que associamos a pessoas que falam em nome da Bíblia. Por conta disso, muitos acreditam que a Bíblia realmente endossa essa atitude (ou mesmo que endossaria o extremismo ‘pró-vida’, como lamentavelmente vimos em nosso país ontem).
Esse é um bom exemplo do que comentei no post [12] “Razões Tradicionais para Ideias Progressistas?”: muito do que o conservadorismo atual afirma ser uma defesa da tradição na verdade envolve ideias MUITO recentes que eles tratam como se fossem milenares quando não o são. Com toda essa retórica, fica parecendo que leis altamente restritivas contra aborto vigoraram durante 2.000 anos, só sendo modificadas pelos ‘pérfidos’ esquerdistas e sua ‘degeneração moderna’. Nada mais longe da verdade e eu mostrarei isso.
Quando olhamos para a Bíblia Hebraica, vulgarmente conhecida como ‘Velho’ Testamento, em vão tentamos encontrar na ‘Lei de Moisés’ presente nos primeiros cinco livros dela (a Torá, ou Pentateuco) tal concepção restritiva sobre o aborto.
O que existe é apenas uma lei que explicitamente trata o aborto infligido em alguém como muito menos grave que o homicídio:
“Se alguns homens pelejarem, e um ferir uma mulher grávida, e for causa de que aborte, porém não havendo outro dano, certamente será multado, conforme o que lhe impuser o marido da mulher, e julgarem os juízes. Mas se houver morte, então darás vida por vida” (Êxodo 21:22,23)
O aborto aqui é tratado como um dano ao corpo da mulher, suscetível de multa e indenização. (Veja meu post [4], sobre como o ‘olho por olho, dente por dente’ é entendido há 2.000 anos dentro da tradição judaica como sendo sobre indenização monetária proporcional ao dano)
O agressor que inflige o aborto NÃO é punido com a morte, a menos que a mãe morra. Ou seja, a morte do feto não é punível com a morte, ela não é ‘vida por vida’. Mas se a mãe morrer, aí aplica-se o ‘vida por vida’. Essa exegese pode ser vista em comentários clássicos como o de Rashi. (Veja meu post [5], sobre como a pena da morte na Bíblia Hebraica não é o que você pensa: 2.000 anos de tradição judaica estabeleciam vastas garantias para evitar ao máximo a aplicação da pena de morte, a Lei Judaica é garantista em matéria criminal)
Como o leitor deve ter percebido nas minhas observações entre parênteses, a jurisprudência judaica em torno da Torá é realmente MILENAR (praticamente bi-milenar a rigor). E ela endossa o que estou falando. É só acessar o Talmude, a enciclopédia de 64 volumes da jurisprudência rabínica em torno da Lei de Moisés. Ou, para facilitar seu trabalho, as compilações abreviadas que contém apenas as decisões jurisprudenciais, sem toda a discussão pesada talmúdica. Por exemplo, o Sitsur Shulchan Aruch:
“o feto não é formado antes de quarenta dias.” (capítulo 158)
Aqui é a decisão de que até os 40 dias da gravidez a tradição judaica de milênios é leniente (permissiva) com o aborto nesse período. É considerado que o feto ainda não está formado.
“O tempo todo em que o feto não sair do interior da mãe, é permitido desmembrá-lo para salvar a vida dela, tanto por intermédio de medicação ou manualmente. Como não chegou a sair do útero, o feto não é considerado uma pessoa. Portanto, ele tem o status de alguém que persegue para matar a mãe.” (capítulo 184)
Aqui a Lei Judaica estabelece que o feto antes de sair de dentro da mãe NÃO é uma pessoa. Isso significa que matá-lo não é equivalente a matar uma pessoa, o que, na decisão jurisprudencial acima, permite matar o feto para salvar a vida da mãe. Mais do que permite: é um dever salvar a vida da mãe matando o feto. (É por isso que fala ‘o status de alguém que persegue para matar a mãe’, se refere à normativa de legítima defesa em favor de alguém sendo perseguido para ser assassinado)
Existem também discussões de fontes mais tradicionais sobre outros casos para permitir o aborto (incluindo incesto, risco à saúde da mãe, e mesmo alto estresse psicológico da mãe), e dentro dos movimentos judaicos contemporâneos a maioria o admite tranquilamente. De fato, na própria jurisprudência clássica, a questão do aborto induzido é largamente ignorada, sequer sendo mencionada no Talmude. Tradicionalmente, entende-se que há uma proibição do aborto por simples conveniência da mãe depois de 40 dias. Mas tal ‘proibição’ NÃO é acompanhada de uma pena criminal. Isso nunca foi penalizável por um tribunal judaico.
Mas de onde veio a ideia de que ‘aborto é assassinato’ afinal? Aqui nós entraremos no cristianismo. E não, também não foi no Novo Testamento que isso foi estabelecido (pois não menciona nenhuma regra sobre o aborto). Na verdade mesmo na Idade Média, os cristãos (católicos!) seguiam a ideia judaica de que o feto não está formado nos 40 dias iniciais (uma posição defendida por Santo Tomás de Aquino — ironicamente um ídolo de muitos conservadores ‘pró-vida’….). Isso só foi mudado em 1869!
Então…. como chegamos nessa situação resumida no mote (claramente modernista e anti-tradicional) do ‘aborto é assassinato’? Isso tem a ver com o caráter helenista do cristianismo. O framework do debate sobre aborto como sendo ‘se a vida começa na concepção ou não’ é herdeiro do framework helenista sobre se ‘a alma entra no corpo na concepção ou não’.
Repito: helenista. Esse debate envolve a antiga filosofia grega, em Aristóteles, Pitágoras, etc. A filosofia grega e o caráter altamente helenizado do cristianismo são os grandes responsáveis no final das conta, uma herança que veio nos assombrar após o século XIX (quando a Igreja Católica abandonou a distinção entre fetos formados e não-formados, em 1869).
Essa discussão de metafísica helenista é alienígena à tradição judaica. Para estabelecer jurisprudência, questões como se a alma entra no corpo no tempo X ou Y, ou se o aborto poderia afetar a ‘salvação da criança’ (nota: não existe essa ideia de salvação no judaísmo), ou outras considerações teológicas e filosóficas, são simplesmente irrelevantes no judaísmo.
O motivo principal para a tradição judaica desincentivar o aborto é que a Lei Judaica é pró-natalista, buscando o aumento populacional do povo judeu, uma consideração pragmática. A questão não tem a ver com o feto ser pessoa, ou ‘vida’, ou ter uma alma.
Voltando ao cristianismo, alguns pais da Igreja na antiguidade achavam que a alma entrava na concepção, outros achavam que demorava um tempo. Por conta dessa discussão, a Igreja teve um histórico complicado com o aborto, com decisões aqui e ali criando penalidades eclesiásticas para puni-lo (exemplo: 10 anos de exclusão de participação na eucaristia para a mulher que abortou, por Basílio Magno no 4º século). Mas essas atitudes variaram ao longo da história da Igreja e entre diversos lugares.
Já igrejas cristãs que se afastam dessa herança helenista, tendem a ser mais tranquilas com o aborto. Por exemplo, a posição oficial da Igreja Adventista do Sétimo Dia (uma igreja que preserva vários aspectos da Lei Mosaica inclusive, como a guarda do sábado e regras dietéticas judaicas) vai nesse sentido:
“as mulheres, às vezes, podem se deparar com circunstâncias excepcionais que apresentam graves dilemas morais ou médicos, como: ameaça significativa à vida da mulher gestante, sérios riscos à sua saúde, defeitos congênitos graves cuidadosamente diagnosticados no feto e gravidez resultante de estupro ou incesto. A decisão final quanto a interromper ou não a gravidez deve ser feita pela mulher grávida após o devido aconselhamento.” (Resolução de 12/10/1992 da Comissão Administrativa da Associação Geral da Igreja Adventista do Sétimo Dia)
Assim, considerando tanto as raízes judaicas da Bíblia como a história ocidental na era cristã, ironicamente a posição mais tradicionalista é a de ser bem mais leniente em matéria de aborto, enquanto essa posição altamente rigorosa e enfática contra o aborto em quaisquer circunstâncias é que é uma ‘degeneração moderna’.
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