[43] Por Que Judaísmo e Cristianismo Diferem sobre o Aborto?
Aqueles que leram o post anterior, sobre o que a Bíblia Hebraica tem a dizer sobre o aborto, podem ter ficado um tanto quanto surpresos. Como podem judaísmo e cristianismo terem uma posição tão diferente sobre o aborto, se eles compartilham em grande parte o mesmo texto religioso (a Bíblia Hebraica, vulgarmente chamada de ‘Velho’ Testamento)?
Uma resposta simples seria dizer que o judaísmo tem uma posição que se aproxima muito mais do que o ‘Velho’ Testamento diz, afinal, o judaísmo ‘seguiria’ apenas este. Mas isso não parece explicar muita coisa, porque o Novo Testamento sequer menciona uma proibição do aborto*.
A resposta mais adequada é o caráter helenista do cristianismo. Apesar de tecnicamente nascido em meio ao judaísmo, o boom da expansão demográfica do cristianismo foi entre gentios (não-judeus) do antigo Império Romano, e, assim, a cultura cristã clássica (desde os Pais da Igreja) é de base helenista, não de base hebraica.
A cultura helenista era caracterizada pela força das escolas filosóficas antigas (a ‘filosofia grega’). Cada escola filosófica tinha uma ‘doutrina’ a defender, e nesse meio ambiente cultural (já começando no próprio Novo Testamento com o judeu helenista Paulo, o 13º apóstolo que nunca conhecera Jesus em vida) a questão crucial era: que nova doutrina é essa?
“E alguns dos filósofos epicureus e estóicos contendiam com ele [Paulo]; e uns diziam: Que quer dizer este paroleiro? E outros: Parece que é pregador de deuses estranhos; porque lhes anunciava a Jesus e a ressurreição. E tomando-o, o levaram ao Areópago [em Atenas], dizendo: Poderemos nós saber que nova doutrina é essa de que falas?” (Atos 17:18,19)
Assim, o cristianismo, em razão da cultura helenista e da filosofia grega, tornou-se uma religião que enfatiza a doutrina, a crença (o que chegou no seu ápice no ramo ocidental do cristianismo; o ramo oriental permaneceu mais ‘místico’ em sua inclinação).
É apenas num ambiente cultural helenista que se torna possível entender por que tantos concílios e tanta energia foram gastos para definir, em seus mais sutis detalhes teológicos, doutrinas altamente abstratas como a da Trindade e a da Dupla Natureza de Cristo, usando noções filosóficas gregas que a maioria do próprio povo comum cristão comum nunca entendeu muito bem (por não ter formação erudita).
E ainda mais: o desvio dessas doutrinas é considerado heresia, sendo o herege excluído da Igreja e, assim, da salvação ministrada por esta. Definir tais doutrinas no cristianismo é questão de vida ou morte, de céu e inferno.
Entretanto, tal ênfase na doutrina, na crença, no dogma, e a própria ideia de que a humanidade está em necessidade de salvação, são coisas simplesmente ALIENÍGENAS para o judaísmo e para a Bíblia Hebraica.
Sim, isso mesmo: a Bíblia original, o tal ‘Velho’ Testamento, NUNCA foi um livro sobre crenças (e nem sobre ‘salvação’). A meu ver, o maior equívoco da tradição cristã foi tornar a Bíblia um livro de crenças e doutrinas. Ler a Bíblia Hebraica sem tal pressuposto torna a sua leitura MUITO MELHOR justamente porque esse pressuposto induz a uma série de erros grosseiros em seu entendimento. (E grande parte dos ateus ironicamente SÃO cristãos no modo em que leem o ‘Velho’ Testamento para criticá-lo)
O judaísmo enfatiza a ação correta, não a crença correta. A Lei Judaica (Halacha) é uma JURISPRUDÊNCIA histórica das comunidades do povo judeu, que não determina crenças e doutrinas, mas sim atitudes e ações. O objetivo da Torá e da Halacha NÃO é salvar a alma de ninguém, mas sim construir uma VIDA COMUNITÁRIA JUSTA nesse mundo.
Eu saliento o termo jurisprudência aqui por um motivo. Cristãos e ateus pegam trechos dos 5 primeiros livros da Bíblia (a Torá) e acham que os entendem seja para apoiar ou criticar. Trechos sobre o ‘olho por olho’, sobre pena de morte, etc. O problema é que NÃO FAZ SENTIDO ler as Miztvot (preceitos) da Torá dessa maneira. Existe toda uma Jurisprudência em torno delas, encontrada no Talmude (Mishná e Gemará) e seus comentários clássicos (como o de Rashi).
Ler apenas como está na Bíblia e achar que entendeu é como pegar o Código Civil Brasileiro e achar que entendeu sem saber como os tribunais decidem sobre aquilo (isto é, a jurisprudência) e como os juristas tem discutido na doutrina.
Agora apliquemos essas considerações ao caso do aborto.
Para o cristianismo de maneira geral, a questão que se coloca é claramente helenista: quando a alma entra no feto? Ou em termos mais ‘higienizados’ atualmente: quando a vida começa?
Note: isso é uma questão filosófica abstrata. E apesar dela LITERALMENTE não ser algo tangível, acredita-se no Ocidente que é esse tipo de questão que é preciso ser decidida ANTES de decidir sobre a questão prática do aborto. Ou seja, precisamos primeiro decidir o que cremos sobre uma questão teórica abstrata, e é tal crença filosófica que vai decidir o que devemos fazer. Essa é a maneira cristã de lidar com o aborto.
Essa questão da alma também é relevante porque acredita-se no cristianismo que toda alma humana precisa de salvação. E nas igrejas que praticam pedobatismo, o batismo infantil, houve/há a ideia de que o bebê só é salvo SE batizado. Então, se a alma já entrou no feto, e ele nunca será batizado, a sua SALVAÇÃO está em jogo. E, assim, uma crença teológica sobre a necessidade da salvação é o fundamento para decidir o que fazer nesse caso.
Já no judaísmo, as crenças teológicas desempenham um papel pequeno (se algum) na determinação da Halacha aplicável ao caso. Em termos judaicos, isso significa que ‘a Agadá não detém autoridade (como prova)’ (vide R. Saadia Gaom, em Otzar Ha-Geonim, Hagigah). Agadá é outro termo-chave para a interpretação judaica das Escrituras, abarcando aquilo que é narrativo, teológico, lendário, homilético etc.
A determinação da Halacha segue um processo de raciocínio intensamente dialético como é facilmente observável por pegar qualquer página do Talmude para ler.
O Talmude basicamente contém MILHARES de sábios (em um intervalo de tempo que vai do 2º século antes da Era Comum — antes mesmo do nascimento de Jesus — até o 5º século da nossa era) debatendo entre si qual seria a decisão aplicável a cada caso para estabelecer as Halachot pertinentes.
Ou seja, a Torá NÃO é uma legislação caída do céu que o divino decidiu tudo de antemão, mas SIM a fonte da jurisprudência que precisa ser desenvolvida pelo RACIOCÍNIO HUMANO.
Então, peguemos a ideia de que o ‘feto antes dos 40 dias é mera água’ dita pelo Rav Hisda no Talmude (Yevamot 69b). Ali discute-se se a Mitsvá de comer terumá, um privilégio da linhagem sacerdotal.
As filhas de um sacerdote podem cumprir esta Mistvá, mas — aqui não vou detalhar a discussão — se ela casa com um israelita que não é da linhagem sacerdotal (cohen), ela não pode mais cumprir isso. Entretanto, ela pode voltar a comer terumá se ficou viúva dele desde que sem filhos ou, se grávida ao tempo do falecimento de seu esposo, ainda estiver em menos de quarenta dias de gravidez — ou seja, quando o feto é mera água.
Mas alguém pode dizer: “ora, hoje sabemos que o feto não é mera água, então a Halacha deve ser mudada!” Não! Não necessariamente. Pare de pensar como um cristão. A maneira judaica de pensar é que, independente se o feto é ou não é literalmente água até os 40 dias, nós o TRATAMOS COMO SE FOSSE. No nosso Direito, chamaríamos isso de ‘ficção jurídica’.
No meu próprio post anterior uma dessas ficções jurídicas já saltava à vista. Quando há risco de vida para a gestante, o feto “tem o status de alguém que persegue para matar a mãe” (Sitsur Shulchan Aruch, capítulo 184).
O status de alguém que persegue diz respeito à Halacha sobre a legítima defesa de outrem. É permitido matar uma pessoa na defesa da vida de outra, a qual estava sendo perseguido pela primeira para ser assassinada. Aqui obviamente os rabinos não estão dizendo que o feto está literalmente perseguindo a mãe para matá-la, mas podemos TRATÁ-LO COMO SE FOSSE para matá-lo antes que nasça.
Ou seja, enquanto para o cristão a ação correta depende de uma crença correta sobre uma matéria filosófica, para o judeu a ação correta não depende disso, e ainda mais, ela pode mesmo amparar-se num ‘como se’, quando tratamos algo COMO SE FOSSE outra coisa que literalmente não é.
Assim, no caso do aborto, o raciocínio judaico é simplesmente que o feto, não tendo nascido ainda, não pode ter o mesmo status halachico de um organismo humano já nascido. O judaísmo prende-se aos fatos CONCRETOS e TANGÍVEIS, sendo irrelevantes crenças mais sutis e mais abstratas que podemos ter ou não (livremente) sobre tais assuntos.
*Alguns leitores apontaram corretamente que existe uma menção ao aborto datada dos primórdios da Igreja no Didaquê, um tratado cristão do final do 1º século cuja entrada no cânon do Novo Testamento foi discutida (mas acabou não entrando e é considerado como um escrito dos ‘pais apostólicos’, a denominação usada para designar os textos mais antigos entre os Pais da Igreja). Mas não o mencionei no post anterior porque MESMO se usarmos esse texto, ainda ficariam muitas dúvidas sobre se o aborto é sempre errado, a partir de qual dia da gravidez passa a ser errado, e assim por diante. O texto do Didaquê é lacônico: “Não mate a criança no seio de sua mãe e nem depois que ela tenha nascido.” Na prática, é compatível com o texto a opinião de Santo Tomás de Aquino ou de Basílio Magno ou a da Igreja Católica contemporânea ou a da Igreja Adventista do Sétimo Dia (todas citadas no post anterior e bem diferentes entre si).
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