[44] A Injustiça na Idolatria: subornando o divino [nos Profetas]
Voltando à programação normal sobre a conexão entre idolatria e injustiça (os últimos 2 posts foram excepcionalmente introduzidos para comentar sobre o tema do aborto), desde os posts [37]-[38], tenho buscado mostrar a seguinte ideia:
Considerando que é correto dizer que os profetas israelitas clássicos tinham como sua queixa central a injustiça social na sociedade em que viviam, e nesse sentido seus livros são grandes obras de crítica sociopolítica da antiguidade, então a outra queixa central dos profetas israelitas clássicos, condenando a idolatria, não é simplesmente uma queixa paralela à anterior ou superior à anterior, mas é PROFUNDAMENTE ENTRELAÇADA com a queixa anterior, sobre a injustiça.
Nesse sentido, os posts [39]-[40]-[41] elaboraram uma de duas maneiras que a idolatria se conecta à injustiça no discurso profético: o rompimento de pactos como uma obrigação geral de justiça que tem como um de seus casos particulares a idolatria enquanto um rompimento do pacto entre Deus e seu povo a respeito da adoração exclusiva do Deus único de Israel.
Esse é o motivo que ajuda a entender porque os profetas não criticam outros povos por sua idolatria, mas apenas pela sua injustiça. A justiça é uma demanda universal, enquanto a rejeição da idolatria é uma demanda particular que depende de um pacto entre Deus e seres humanos, onde Deus se faça ‘conhecer’ em alguma medida a estes seres humanos.
(E assim entende-se também porque a tradição judaica posterior desenvolveu a ideia de que o pacto entre Deus e Noé, que vincularia toda a humanidade, também continha uma rejeição da idolatria, mas entendida em termos mais relaxados)
Neste post e nos próximos quero elaborar outro motivo pelo qual a idolatria é conectada à injustiça nos profetas israelitas: a maneira como a idolatria incorpora um suborno ao divino.
Essa segunda razão é um pouco mais sutil nos profetas. Não encontramos neles essa ideia de uma forma tão uniforme como encontramos a do ‘Pacto’ (brit) que veio a influenciar tão profundamente a Bíblia Hebraica como um todo e a própria Torá (em especial o livro de Deuteronômio, cuja redação é já inspirada nos profetas).
Então, já aviso que não existe neles a ideia de ‘suborno do divino’ como algum tipo de categoria geral nem mesmo de um termo comum. Aqui eu uso essa expressão para fins didáticos, isto é, para reconstruir um aspecto importante de sua condenação à idolatria em termos compreensíveis para nós hoje, mas que nos próprios textos ocorre de uma forma meio espalhada aqui e acolá.
Feitas essas observações, a ideia aludida aqui é a seguinte:
- o culto aos outros deuses na antiga Israel, advindo dos povos vizinhos, era MUITO relaxado para com a questão da justiça e inclusive envolvia a prática de atos injustos como culto ao divino, o principal dos quais sendo o sacrifício dos próprios filhos no fogo.
- o culto idólatra (tanto aos outros deuses quanto ao próprio Deus de Israel transformado assim em um ídolo) envolvia comprar o favor divino por intermédio de sacrifícios rituais, em prejuízo da prática da justiça que assim poderia ser violada sem temor.
Juntando esses dois pontos, podemos afirmar que os profetas condenavam o culto aos outros deuses (e o próprio o culto ao Deus de Israel feito à semelhança do culto idólatra) em razão de neles o divino ser subornado, por meio de rituais, para não levar em conta nossas injustiças e para nos favorecer mesmo que sejamos injustos.
E ainda poderíamos acrescer: os deuses desses cultos são injustos, porque aceitam ser subornados, mas o Deus de Israel não tolera isso (sendo assim um juiz justo que não aceita suborno contra o inocente ou para tomar o culpado por inocente).
Assim, a forma de culto contra o qual os profetas se levantaram incentivava a prática da injustiça e mesmo ‘divinizava’ a injustiça. Veremos como isso foi trabalhado no contexto dos profetas nos próximos posts.
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