[46] O Crime da Idolatria: Sacrifício Infantil [Profetas/Deuteronomista]
Como vimos no post anterior, para os profetas israelitas o culto idólatra era marcada por uma prática de subornar os deuses por meio de sacrifícios e rituais, de uma maneira que tais deuses não se importam se praticamos justiça ou não. Em contraste a isso temos o Deus de Israel, o Deus dos profetas, que ODEIA a religiosidade, mesmo que voltada a cultuá-lo, se tal religiosidade é dissociada da justiça.
Um dos lugares em que tal contraste ficava visível era na prática do sacrifício infantil no culto de povos vizinhos, mais especificamente o sacrifício de um filho criança para o deus Moloch. Isso significa que, em princípio, para o culto idólatra era admissível sacrificar um filho para obter favores divinos.
Os profetas viam nisso um crime. É impossível cultuar o divino cometendo um ato de tamanha injustiça (matar uma pessoa inocente, uma criança indefesa). Se a principal forma de cultuar a Deus nos profetas era a própria prática da justiça, praticar deliberada e friamente uma injustiça dessas é uma enorme profanação a Deus.
Para entender melhor isso, temos de fazer uma pequena viagem à antiguidade do povo hebreu. Na ordem judaica dos livros da Bíblia Hebraica, os livros dos profetas clássicos são pareados com os livros históricos de Josué/Juízes/[1–2]Samuel/[1–2]Reis numa coleção de rolos chamada de Neviim (Profetas).
Tais livros nos descrevem o pano de fundo histórico que os profetas tinham em mente (especialmente o livro dos Reis) e assim a leitura deles é conectada. Além disso, a pesquisa acadêmica contemporânea mostra que tais livros fazem parte da chamada História Deuteronomista, um panorama coeso da história do Israel antigo escrito por uma escola de redatores (que também redigiram o livro de Deuteronômio na Torá) durante o exílio babilônico. Assim, é importante destacar que os Deuteronomistas já tinham em mente os ensinamentos proféticos (especialmente Jeremias).
Dentro da História Deuteronomista, um dos reis da antiga Judá, o Rei Manassés, é retratado como o pior de todos. Ele era a nêmesis de tudo contra o qual os profetas lutavam. E ali no livro dos Reis se denuncia que, para além da idolatria costumeira, Manassés foi ainda mais fundo, imitando algo que seu avô Acaz também fizera (2Reis 16:2) antes dele:
“E até fez passar a seu filho pelo fogo” (2 Reis 21:6)
Mais adiante, o redator reflete em cima desse panorama:
“porque Manassés de tal modo os fez errar, que fizeram pior do que as nações, que o Senhor tinha destruído de diante dos filhos de Israel. Então o Senhor falou pelo ministério de seus servos, os profetas, dizendo: Porquanto Manassés, rei de Judá, fez estas abominações, fazendo pior do que tudo quanto fizeram os amorreus, que foram antes dele” (2 Reis 21:9–11)
Note: “fizeram pior do que as nações que habitavam a terra prometida anteriormente”. Esse é o elemento-chave. Os Israelitas tornaram-se piores que os antigos Caananitas, cuja razão para serem expulsos da terra prometida segundo o livro do Deuteronômio era a prática de… sacrifício infantil.
“Assim não farás ao Senhor teu Deus; porque tudo o que é abominável ao Senhor, e que ele odeia, fizeram eles a seus deuses; pois até seus filhos e suas filhas queimaram no fogo aos seus deuses.” (Deuteronômio 12:31)
“Quando entrares na terra que o Senhor teu Deus te der, não aprenderás a fazer conforme as abominações daquelas nações. Entre ti não se achará quem faça passar pelo fogo a seu filho ou a sua filha […] Pois todo aquele que faz tal coisa é abominação ao Senhor; e por estas abominações o Senhor teu Deus os lança fora de diante de ti. (Deuteronômio 18:9–10 e 12)
Isso até nos faz lembrar que nos Dez Mandamentos (o início da entrega da Lei para o povo hebreu) está escrito “Honra a teu pai e tua mãe…” e logo depois “Não matarás”…
E o Deuteronomista é coerente nessa perspectiva quando conta a história do Reino de Israel (Norte) que fora exilado antes do Reino de Judá (Sul). Quando o livro dos Reis reflete em cima da conquista assíria do Reino de Israel, ele ressalta a prática do sacrifício infantil:
“E andaram nos estatutos das nações que o Senhor lançara fora de diante dos filhos de Israel, e nos dos reis de Israel, que eles fizeram. […] Também fizeram passar pelo fogo a seus filhos e suas filhas” (2 Reis 17:8 e 17)
E quanto à conexão com os profetas? Como eu disse, os Deuteronomistas se basearam muito no profeta Jeremias, que começou sua atuação logo após o reinado de Manassés. E Jeremias falou sobre esse tópico diversas vezes:
“E edificaram os altos de Tofete, que está no Vale do Filho de Hinom, para queimarem no fogo a seus filhos e a suas filhas, o que nunca ordenei, nem me subiu ao coração.” (Jeremias 7:31)
“Porque edificaram os altos de Baal, para queimarem seus filhos no fogo em holocaustos a Baal; o que nunca lhes ordenei, nem falei, nem me veio ao pensamento.” (Jeremias 19:5)
“E edificaram os altos de Baal, que estão no Vale do Filho de Hinom, para fazerem passar seus filhos e suas filhas pelo fogo a Moloque; o que nunca lhes ordenei, nem veio ao meu coração, que fizessem tal abominação, para fazerem pecar a Judá.” (Jeremias 32:35)
Note a insistência: Eu (Deus) nunca ordenei, nunca veio no meu coração aceitar algo assim, nunca pensei em querer isso. Esse tipo de coisa representa o que há de mais ofensivo ao caráter divino.
E cada uma dessas passagens é seguida IMEDIATAMENTE da ameaça de uma punição que haverá de ocorrer nesse vale do Tofete: aqueles que mataram seus próprios filhos ali haverão de ser mortos pelos babilônios ali também. Aqui cito apenas uma para ilustração.
“Por isso eis que dias vêm, diz o Senhor, em que este lugar não se chamará mais Tofete, nem o Vale do Filho de Hinom, mas o Vale da Matança. Porque dissiparei o conselho de Judá e de Jerusalém neste lugar, e os farei cair à espada diante de seus inimigos, e pela mão dos que buscam a vida deles; e e darei os seus cadáveres para pasto às aves dos céus e aos animais da terra.” (Jeremias 19:6,7)
Os profetas Isaías e Ezequiel fazem coro a Jeremias:
“Porventura não sois filhos da transgressão, descendência da falsidade, Que vos inflamais com os deuses debaixo de toda a árvore verde, e sacrificais os filhos nos ribeiros, nas fendas dos penhascos?” (Isaías 57:4-5)
“E, quando ofereceis os vossos dons, e fazeis passar os vossos filhos pelo fogo, não é certo que estais contaminados com todos os vossos ídolos, até este dia? E vós me consultaríeis, ó casa de Israel? Vivo eu, diz o Senhor DEUS, que vós não me consultareis.” (Ezequiel 20:31)
Por fim, cabe destacar que há um salmo que também reflete em cima do mesmo ponto:
“Prestaram culto aos seus ídolos, que se tornaram uma armadilha para eles. Sacrificaram seus filhos e suas filhas aos demônios. Derramaram sangue inocente, o sangue de seus filhos e filhas sacrificados aos ídolos de Canaã; e a terra foi profanada pelo sangue deles.” (Salmos 106:36–38)
Eis aquilo que, da Torá aos Profetas, passando pelos Salmos e pela História Deuteronomista, toda a Bíblia Hebraica em coro faz questão de dizer. O sangue derramado das crianças sacrificadas clama por justiça. Uma ordem das coisas baseada em matar crianças indefesas será varrida da face da terra.
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