[47] Quando Deus matou os deuses por suas injustiças!

A Estrela da Redenção
4 min readAug 30, 2020

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Como afirmado nos posts anteriores, uma das conexões entre idolatria e injustiça no contexto profético clássico se devia ao fato de que o culto aos outros deuses não exigia a prática da justiça e, por vezes, autorizava atos injustos como forma de culto.

Mas uma outra forma de pensar isso seria dizer que a idolatria se conecta à injustiça porque os outros deuses são injustos. Há algum vestígio disso no pensamento bíblico?

Uma coisa há muito reconhecida na pesquisa bíblica acadêmica é que a forma mais antiga de religião israelita não se fundava na negação da existência dos outros deuses, mas sim na adoração exclusiva a uma única Divindade (o que é chamado de henoteísmo ou monolatria) pelo povo hebreu. A Divindade de Israel poderia coexistir com outras, das outras nações, todas sendo Elohim (deuses).

No contexto profético, já vemos o desenvolvimento da visão de que o Deus de Israel é o Deus ÚNICO, sendo os ídolos vistos como simplesmente obras humanas. Por exemplo, em Deutero-Isaías (vide Isaías 44:8–19). Aqui é onde costumeiramente se designa o início de um monoteísmo em sentido estrito. (Mas veja a discussão feita por Benjamin Sommer no apêndice de seu livro “The Bodies of God and the World of Ancient Israel” [2011] apresentando que essa dicotomia comum de monoteísmo x politeísmo é inadequada para falar do contexto religioso do Israel antigo)

Agora note: na visão mais antiga, ao se admitir que os outros deuses também existiam, era possível atribuir a eles qualidades e defeitos. E, assim, é possível que esses deuses sejam julgados também. Esse tipo de ideia é preservado de relance na narrativa sobre as pragas contra o Egito para libertação do povo hebreu no livro de Êxodo:

“E eu passarei pela terra do Egito esta noite […] e em todos os deuses do Egito farei juízos. Eu sou o Senhor.” (Êxodo 12:12)

O Deus de Israel não somente trouxe juízos contra os egípcios que haviam escravizado os hebreus, mas também contra os deuses do Egito. De fato, isso pode ser interpretado de uma maneira que tanto presuma que os deuses do Egito existam como presuma que não existam. Mas é interessante ver que era admissível para os antigos israelitas pensarem que Deus trouxe castigo para outros deuses.

E então, num dos raros momentos em que conseguimos achar alguma mitologia na Bíblia Hebraica (no sentido de ser retratado um mundo ‘celestial’ com seres supramundanos), temos o incrível salmo 81.

Richard Elliot Friedman em seu livro “Exodus” (2017) comenta que a passagem de uma orientação mais politeísta para uma mais monoteísta na antiguidade israelita (que ele atribui em grande medida ao trabalho dos levitas) talvez tenha dado lugar a indagações sobre o que aconteceu aos deuses e deusas. Afinal, era óbvio que os ancestrais haviam cultuado outros deuses.

Para Friedman, a surpreendente resposta seria: os deuses existiam, mas eles morreram. (!) O salmo 82 conteria este mito da morte dos deuses. Ali vemos Deus julgar os deuses por suas INJUSTIÇAS e INIQUIDADES. A injustiça social foi a razão para Deus destruir os demais deuses e ficar sozinho! Veja por você mesmo:

“Deus está na congregação dos poderosos; julga no meio dos deuses.
Até quando julgareis injustamente, e aceitareis as pessoas dos ímpios? (Selá.)
Fazei justiça ao pobre e ao órfão; justificai o aflito e o necessitado.
Livrai o pobre e o necessitado; tirai-os das mãos dos ímpios.
Eles não conhecem, nem entendem; andam em trevas; todos os fundamentos da terra vacilam.
Eu disse: Vós sois deuses, e todos vós filhos do Altíssimo.
Todavia morrereis como homens, e caireis como qualquer dos príncipes.
Levanta-te, ó Deus, julga a terra, pois tu possuis todas as nações.” (Salmos 82:1–8)

“Je suis venu comme j’avais promis, Adieu” [Eu Vim Como Eu Prometi], Yves Tanguy, 1926.

Note que se você não supor a existência (nem mesmo passada) dos outros deuses, é possível interpretar tal salmo como referindo-se a seres humanos poderosos como juízes (veja o comentário de Rashi) ou a seres angelicais (os anjos ministradores das nações na tradição judaica).

Mas o ponto de Friedman é que, independente se o cantor ou o compositor deste salmo no Antigo Templo considerava que este cântico fosse literalmente a condenação à morte dos deuses ou que isso fosse apenas uma metáfora, este salmo RETRATA a morte dos deuses. Seja literal ou figurativamente, vemos Deus julgar os deuses.

E como o leitor assíduo deste blog já deve saber, isso mais uma vez PROVA o que eu sempre falo. A Bíblia Hebraica é um livro de reflexão sociopolítica. A sua maior preocupação existencial é com o estabelecimento de uma vida comunitária JUSTA nesse mundo.

Pera, quer dizer então que esse livro esse tempo todo era sobre justiça social e comunitária? SEMPRE FOI. A Bíblia Hebraica NUNCA foi um livro sobre salvação da alma como tanto o vendem por aí…

Isso é tão verdade que ATÉ MESMO OS DEUSES PAGÃOS SÃO JULGADOS POR SUA INJUSTIÇA CONTRA OS VULNERÁVEIS. São julgados por não cumprirem quatro preceitos: 1) fazer justiça ao pobre e ao órfão; 2) garantir direitos ao aflito e ao necessitado; 3) livrar o pobre e o necessitado; 4) tirá-los das mãos dos ímpios que os oprimem. Ou seja, critérios de justiça distributiva e libertação de toda opressão.

Se nem os deuses escaparam de serem julgados por tais critérios, como nós poderíamos escapar?

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A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.