[48] Juízes, Digam ‘Não’ ao Suborno como o Divino Juiz Faz

A Estrela da Redenção
4 min readSep 2, 2020

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Nos últimos posts temos discutido como a rejeição da idolatria aos outros deuses nos profetas se relaciona com a conexão entre injustiça e idolatria. E uma dessas conexões está no fato de que o culto chamado de ‘idólatra’ (seja voltado a outros deuses ou ao próprio Deus de Israel convertido num ídolo) era dissociado da prática da justiça, que o Deus de Israel por sua vez cobrava como superior ao próprio culto religioso.

No post anterior vimos como o próprio Deus de Israel era imaginado como julgando os outros deuses, por aceitarem ser ‘subornados’ pelos injustos de modo a favorecê-los, no salmo 82. E também comentei que, mesmo na ausência desses deuses, o salmo também pode ser interpretado como referindo a pessoas poderosas, como juízes (vide o comentário clássico de Rashi).

Então, o círculo se fecha no argumento que venho desenvolvendo: da mesma forma como a idolatria está conectada à injustiça de subornar o divino, o mandamento para os juízes (humanos) de não aceitar suborno está conectado com o fato do Deus de Israel, o divino Juiz, não os aceitar também.

E isso se liga a uma noção mais geral de não perverter o juízo, que inclui não dar falso testemunho contra alguém num tribunal e de administrar a justiça imparcialmente mesmo para aqueles que nunca sequer poderiam subornar alguém: os órfãos, as viúvas, os pobres etc.

Em 1Samuel (um dos livros da História Deuteronomista que é conectada aos livros proféticos) vemos o profeta não-literário Samuel (que atuou como um líder do povo até que o Rei Saul fosse ungido como monarca) dizer:

“Eis-me aqui; testificai contra mim perante o Senhor, e perante o seu ungido, a quem o boi tomei, a quem o jumento tomei, e a quem defraudei, a quem tenho oprimido, e de cuja mão tenho recebido suborno e com ele encobri os meus olhos, e vo-lo restituirei. ” (1 Samuel 12:3)

No que foi respondido: “Então disseram: Em nada nos defraudaste, nem nos oprimiste, nem recebeste coisa alguma da mão de ninguém.” (1 Samuel 12:4)

Aqui vemos o paradigma do juiz justo que perpassa as Escrituras Sagradas. Alguém que nunca encobre seus olhos para não julgar a injustiça, porque recebeu suborno para tanto. Ao contrário, julga conforme o início da parashá Shoftim (Juízes) do livro do Deuteronômio (Torá, e mesmo redator da História Deuteronomista):

“Juízes e oficiais porás em todas as tuas cidades que o Senhor teu Deus te der entre as tuas tribos, para que julguem o povo com juízo de justiça.
Não torcerás o juízo, não farás acepção de pessoas, nem receberás peitas; porquanto a peita cega os olhos dos sábios, e perverte as palavras dos justos.
A justiça, somente a justiça seguirás; para que vivas, e possuas em herança a terra que te dará o Senhor teu Deus.” (Deuteronômio 16:18–20)

De fato, as regras relativas ao julgamento justo e inaceitabilidade do suborno já advém do estrato de leis mais antigo da Bíblia Hebraica, bem anterior aos próprios profetas (e que serviram de fonte e influência para os profetas levarem esse valor da justiça às últimas consequências), o assim chamado Código da Aliança:

“Não admitirás falso boato, e não porás a tua mão com o ímpio, para seres testemunha falsa.
Não seguirás a multidão para fazeres o mal; nem numa demanda falarás, tomando parte com a maioria para torcer o direito.
Nem ao pobre favorecerás na sua demanda. […] Não perverterás o direito do teu pobre na sua demanda.
De palavras de falsidade te afastarás, e não matarás o inocente e o justo; porque não justificarei o ímpio.
Também suborno não tomarás; porque o suborno cega os que têm vista, e perverte as palavras dos justos.” (Êxodo 23:6–9)

Aqui podemos fazer uma comparação com a ideia da justiça ser ‘cega’, que, na nossa cultura jurídica, é a metáfora para a justiça ser imparcial, e cuja representação iconográfica deriva da deusa romana Iustitia (Justitia), a deusa da justiça (análoga à deusa grega Dice) e de onde etimologicamente deriva nossa palavra em português ‘justiça’.

Senhora Justiça na “Gerechtigkeitsbrunnen” [Fonte da Justiça], feita por Hans Gieng, em 1543, na cidade de Bern (Suíça), é a primeira representação conhecida da Justiça como ‘cega’.

Para os hebreus, a metáfora era diferente. Um juiz ‘cego’ é aquele que faz de conta que não vê a opressão e a injustiça. Para julgar bem, é preciso estar com os olhos bem abertos. Ver a opressão e a injustiça, ao invés de fingir de conta que não as vimos, é o maior motivador para corrigi-las.

Os profetas como tal se queixaram diversas vezes dos juízes aceitarem subornos. Alguns exemplos:

“Pois sei quantas são as suas transgressões e quão grandes são os seus pecados. Vocês oprimem o justo, recebem suborno e impedem que se faça justiça ao pobre nos tribunais.” (Amós 5:12)

“Os seus chefes dão as sentenças por suborno” (Miquéias 3:11)

“[Ai] Dos que justificam ao ímpio por suborno, e aos justos negam a justiça!” (Isaías 5:23)

Deve-se destacar que a figura do reto julgamento é tão importante no judaísmo que os próprios rabinos são melhor entendidos como juízes comunitários tradicionais do povo judeu do que como seus sacerdotes religiosos (algo que eles explicitamente não são).

A figura do rabino é, nesse sentido, semelhante à do árbitro na arbitragem comercial: um árbitro é um juiz não-estatal para o qual as partes voluntariamente aceitam suas decisões. Daí advém a importância da Halacha, a Jurisprudência Judaica.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.

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