[49] Um Suborno que Deus Aceita? [Provérbios]

A Estrela da Redenção
6 min readSep 5, 2020

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Como vimos no post anterior, o preceito de que os juízes não devem aceitar subornos está conectado à ideia de que o Deus de Israel como o Juiz Divino não aceita subornos também.

Essa ideia é deixada explícita no livro de Deuteronômio, que faz parte da Torá (e que, como expliquei em post anterior, tem uma grande conexão com os livros dos Profetas):

“Pois o Senhor, o seu Deus, é o Deus dos deuses e o Soberano dos soberanos, o grande Deus, poderoso e temível, que não age com parcialidade nem aceita suborno. Ele defende a causa do órfão e da viúva e ama o estrangeiro, dando-lhe alimento e roupa.” (Deuteronômio 10:17,18)

Contudo, uma curiosidade interessante é que há um trecho do livro de Provérbios, um exemplar da literatura de sabedoria dentro da Bíblia Hebraica, que pode ser interpretado como dizendo que Deus aceita suborno:

“Ele tirará suborno do peito do perverso, para perverter as trilhas da justiça” (Provérbios 17:23)

Aqui você provavelmente encontrará uma diferença na tradução entre traduções judaicas e cristãs. Veja como duas traduções cristãs mostram um diferente sujeito para a frase.

1- Almeida Corrigida e Fiel: “O ímpio toma presentes em secreto para perverter as veredas da justiça.” (Provérbios 17:23)

2- Nova Versão Internacional: “O ímpio aceita às escondidas o suborno para desviar o curso da justiça.” (Provérbios 17:23)

Na tradução cristã, o ímpio é o sujeito da frase. Na tradução judaica, o ímpio é o objeto da frase. O Hebraico Bíblico tem certa complexidade no que diz respeito à sua tradução, o que resulta nesse tipo de diferença gritante (que nos deixa mais conscientes de quão tolo é a maneira como tanta gente acha que tem certeza de que entendeu algo que leu na Bíblia quando só leu superficialmente uma tradução).

Aqui eu vou seguir a interpretação tradicional judaica desse verso, entendendo o ímpio como objeto. E o mesmo gera a seguinte perplexidade: Deus aceita suborno?

Antes de mais nada, é importante perceber que o livro de Provérbios concorda com a condenação feita à aceitação de suborno pelos juízes, em tom similar àquele que já vimos no post anterior, convergindo assim com o Código da Aliança (Livro de Êxodo), o Deuteronômio, a História Deuteronomista e os Profetas. Isso ocorre no mesmo capítulo 17 do trecho anteriormente citado:

“Um suborno é uma joia encantadora aos olhos daquele que a possui; para onde se vira ele prospera” (Provérbios 17:8).

Aqui os comentaristas judaicos comentam esse verso discutindo como o suborno influencia na psicologia do julgador:

“O suborno parece aos olhos daquele que o recebe como uma pedra preciosa, de modo que, para onde ele se vira, ele se esforça em achar uma razão que justifique o doador do suborno.” (Ibn Nachmiash, Metsudat David)

“Mesmo juízes que se julgam incorruptíveis terão suas percepções influenciadas pelo presente de uma das partes. E aquele que deu o suborno não preocupar-se-á mais em se preparar seriamente para o tribunal. Ele se sente como aquele que ostenta uma joia encantadora, despertando atenção e simpatia.” (Malbim)

De fato, o caminho da sabedoria envolve recusar suborno:

“Aquele que é ávido por ganhos perturba sua própria casa, mas aquele que detesta presentes [subornos] viverá.” (Provérbios 15:27)

Então, isso deve deixar na dúvida: como conciliar tudo isso com o entendimento judaico tradicional de que o verso de Provérbios 17:23 refere a Deus poderia aceitar um suborno do perverso, para assim perverter a trilha da justiça!?

Aqui os comentaristas judaicos vem novamente em nosso socorro. Rashi comenta da seguinte maneira:

“Deus aceita as palavras de humildade e apaziguamento do peito dos perversos, isto é, em segredo, entre Ele e eles, para mudar o seu veredicto de mau para bom.” (Rashi)

Um Midrash apresenta esse raciocínio de forma mais completa:

“Está escrito em sua Torá: ‘não aceite suborno’ [Êxodo 23:8]… mas o Senhor aceita subornos, como afirma o versículo, ‘Ele aceitará suborno do âmago do homem perverso’ [Provérbios 17:23]? Qual é o suborno que Deus aceita? Ele aceita teshuvá [arrependimento] e bons atos do perverso neste mundo. Deus diz ao povo judeu, ‘Meus filhos! Enquanto os portões da teshuvá estiverem abertos, Eu aceitarei subornos neste mundo. Mas quando Eu sentar em julgamento no Mundo Vindouro, Eu não aceitarei subornos, como o versículo declara, ‘Ele não acatará nenhum resgate’ [Provérbios 6:35]” [Yalkut Shimoni, Salmos, Remez 670]

Ou seja, aqui a ideia é totalmente diferente do culto idólatra cujos deuses poderiam ser subornados via sacrifícios e rituais sem ligar se somos justos ou não. Ao contrário, o Deus de Israel liga muito se somos justos ou não, mas existe uma forma de suborná-lo quando fomos injustos: se arrepender [fazer teshuvá] e nos voltarmos para a justiça. Então aqui se faz um ‘trocadilho’ com a ideia do ‘suborno’.

Isso é bem relevante para entender como a Bíblia Hebraica deve ser interpretada. Numa visão cristã muito comum hoje em dia (e que muitos neo-ateus assumem sem questionamentos), a Bíblia é interpretada como um livro de ‘doutrinas’. Você caça em suas páginas ‘versos-prova’ para sustentar certas crenças e doutrinas.

Mas isso é um erro. A Bíblia Hebraica não se submete a tal ‘linearidade’. Ela pode em um momento falar que Deus nunca aceita suborno e em outro falar que Deus ainda aceita suborno. Esse tipo de literatura recorre muito a figuras de linguagem. A Bíblia Hebraica NUNCA foi um livro de crenças e doutrinas. Lê-la assim gera incontáveis equívocos.

Enquanto o cristianismo (em especial o ocidental) tornou a Bíblia um livro para gerar dogmas e doutrinas, o judaísmo se relaciona com a Bíblia via comentários e exposições. Sua forma por excelência é o Midrash. Ao invés de estruturar uma doutrina ou dogma que você constrói a partir dos textos, o judaísmo foca em elaborar os próprios textos (como um intérprete literário faria).

Mas retornando ao ‘suborno’ que Deus aceita, temos essa palavra, teshuvá, que pode ser traduzida como arrependimento. Ela representa justamente aquilo que os profetas queriam que o povo fizesse, reconhecesse sua injustiça e se voltasse para o caminho da retidão, entendida em termos profundamente comunitários como já comentei diversas vezes.

“El somni de la voluntat ferida — Le rêve de la volonté blessé” [O Sonho de Vontade Ferida], Angel Planells Cruanas, 1929.

Como estamos falando de judaísmo, a teshuvá não fica num nível ambíguo como se tornou comum pensar nisso na cultura atual (pelo caso extremo do evangelicalismo com seu foco em ‘aceitar Jesus como seu Senhor e Salvador’). Rambam, mais conhecido no Ocidente como Maimônides, escreveu um livro de Leis da Teshuvá, contido na sua obra magna Mishnê Torá). Sim, temos LEIS que explicam o processo do arrependimento. Rambam explica algumas formas que a teshuvá ganha corpo:

“Entre os caminhos para teshuvá, está apto para o penitente: a) implorar insistentemente para Deus com lágrimas e súplicas; b) dar caridade ao máximo de suas possibilidades; c) se distanciar o máximo possível do assunto com o qual pecou; d) mudar seu nome, como querendo dizer, ‘eu sou uma pessoa diferente, eu não sou a mesma pessoa que fez aquelas coisas’; e) mudar todos seus atos para seguir um caminho mais correto; f) viajar em exílio, visto que o exílio expia pelos pecados, e torna a pessoa submissa, humilde e branda.” (Leis da Teshuvá 2:4)

Isto é, a teshuvá envolve o reconhecimento do erro e a disposição para repará-lo por meio de atos de justiça. Ela é um processo que pode ser realizado de forma maior ou menor, mais ou menos completa.

Como Rabi Lazar dizia: “Três coisas anulam um decreto severo: Tefilá (Oração), Tzedacá (‘Caridade’, mais rigorosamente, contribuir para a Justiça Distributiva) e Teshuvá (Arrependimento)”. (Talmud Yerushalmi, Taanit 9b)

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A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.