[5] A Bíblia Hebraica é punitivista? Pena de Morte e Garantismo Penal na Lei Judaica

A Estrela da Redenção
4 min readJun 22, 2020

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Na Bíblia Hebraica, encontramos diversos atos que podem ser sujeitos à pena de morte pela Torá (Lei) Judaica. Cerca de 35 atos são sujeitos a isso, que vão desde homicídio, até adultério, violar o descanso do sábado, etc. Algumas histórias da Bíblia apresentam a pena de morte sendo aplicada a alguns casos. Nossa sociedade se divide sobre esse tipo de coisa:

À direita, temos pessoas que se deleitam com essas passagens para justificar uma aplicação indiscriminada da pena de morte e o slogan ‘bandido morto, bandido morto’ com base na Bíblia.

À esquerda, temos pessoas que considerariam a Bíblia Hebraica um livro ‘punitivista’, que aplica penas draconianas, quando o correto seria um garantismo penal, que ofereça amplas garantias e direitos ao acusado por um crime, ‘seus direitos humanos’. Mas admiram Jesus, que no Evangelho de João, teria isentado uma mulher adúltera do apedrejamento*, ao falar: “Aquele que de entre vós está sem pecado seja o primeiro que atire pedra contra ela.” (João 8:7) e prosseguiu “Nem eu também te condeno; vai-te, e não peques mais.” (João 8:11).

Entretanto, em que pesem as aparências punitivistas, a tradição judaica entendeu sua própria Lei a respeito da pena de morte de uma forma extremamente garantista. Ao ponto de que sua aplicação, na verdade, foi rara, e, para alguns dos atos formalmente passíveis de pena de morte, nunca houve aplicação de pena de morte em toda a história judaica em 3 milênios.

Havia mesmo um dito segundo o qual um tribunal que condena UM ÚNICO homem a cada SETENTA ANOS era um tribunal assassino (Mishnah Makkot 1). Vejam: isso não é uma interpretação moderna. É um dito de DOIS MILÊNIOS ATRÁS, por rabinos da própria época de Jesus.

“The Sanhedrim” [O Sinédrio], na People’s Cyclopedia of Universal Knowledge [Enciclopédia Popular do Conhecimento Universal], 1883, retratando o antigo tribunal judaico máximo existente antes da diáspora.

Isso ocorre porque os sábios do Talmude reconheciam uma série de garantias e procedimentos a serem cumpridos antes de penalizar alguém à morte. Alguns exemplos (com base em Makkot 6b; Mishnah Sanhedrin 1; Sanhedrin 17a):

1) Duas testemunhas precisavam presenciar o ato (Deuteronômio 17:6), então confissão (seja forçada ou voluntária) não era admitida como prova;

2) Aquele que cometia o ato devia ser avisado no momento que o ato era passível de pena de morte, e só seria punível com a morte se ainda assim fizesse o ato;

3) As testemunhas seguiam alguns requisitos para serem confiáveis, elas tinham de conseguir uma ver a outra no momento do ocorrido, seu testemunho não poderia se contradizer mesmo em detalhes menores;

4) O tribunal precisava ser composto por pelo menos 23 juízes;

5) A condenação à morte precisava de uma maioria qualificada no tribunal (13 votos);

6) Caso o tribunal fosse unânime na decisão de forma imediata, todos os juízes a favor da morte, o acusado era absolvido; [a ideia aqui é que um tribunal não podia condenar no mesmo dia do procedimento de ouvir as testemunhas, era preciso uma suspensão de uma noite porque algum juiz poderia pensar em algum motivo para absolver o acusado; então, se todos já estavam convencidos de sua culpa, não haveria possibilidade desse contraditório]

7) O tribunal poderia dar uma nova chance ao acusado (tipo um benefício de ‘reú primário’ hoje em dia) e apenas se ele repetisse o mesmo ato seria condenado à morte.

Ou seja. o entendimento rabínico tornou quase impossível aplicar a pena de morte, os antigos sábios judaicos eram muito indispostos a aplicar esse tipo de regra MESMO QUE ela estivesse autorizada nas próprias Escrituras.

“Grand Sanhédrin des Israélites de France (4 février 1807)” [O Grande Sinédrio dos Israelistas da França (4 de fevereiro de 1807], Émile Vernier & Edouard Moyse, 1868, retratando a tentativa por Napoleão Bonaparte de restabelecer o Sinédrio , para que este conferisse status legal às respostas fornecidas por uma Assembléia de Notáveis Judaica a 12 questões feitas pelo governo napoleônico acerca da Lei Judaica.

A absolvição de Jesus à mulher adúltera, “vai e não peques mais”, desse ponto de vista não era algo excepcional: provavelmente ocorreria simplesmente aplicando a Lei Judaica num tribunal regular. Rabi Akiva e Rabi Tarfon (que viveram também no 1º século) por exemplo disseram que se servissem no Tribunal NINGUÉM seria condenado à morte (Mishnah Makkot 1). Jesus era como R. Akiva e R. Tarfon.

Um caso interessante também é a possibilidade bíblica de condenar à morte um ‘filho teimoso e rebelde” (Deuteronômio 21:18–21). O que os sábios do Talmude concluíram? Se fossem como muitos cristãos modernos, concluiriam: ok, Deus mandou, então tá certo.

Mas o que os rabinos concluíram foi: NUNCA HOUVE E NUNCA HAVERÁ o ‘filho teimoso e rebelde’ descrito nessa passagem! Isso é apenas uma possibilidade teórica que nos dá a oportunidade de ganharmos uma recompensa por estudá-la na Torá. (Sanhedrin 71a) Lembrem: não é interpretação moderna, mas de DOIS MILÊNIOS ATRÁS.

Por fim, essa reflexão sobre a questão da pena de morte na Lei Judaica nos leva a questionar os evangelhos do Novo Testamento que colocam um tribunal judaico como responsável por emitir uma condenação à morte para Jesus (a qual teria sido aplicada por um relutante Pôncio Pilatos). Os evangelhos apresentam um procedimento totalmente em desacordo com a Lei Judaica. E por outras fontes sabemos que Pôncio Pilatos era muito mais cruel que o retratado nos evangelhos, tendo executado inúmeros judeus diversas vezes arbitrariamente.

Esse mal entendido milenar levou a tanto antissemitismo com base na acusação cristã de que os judeus seriam responsáveis pela morte de Jesus… Enquanto os cristãos mancharam sua própria história de sangue com a inquisição, caça ás bruxas e afins, historicamente muito mais dispostos a condenar pessoas à morte do que os judeus nunca foram.

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Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.

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