[50] Pra que Imagens de Escultura se temos Imagens de Deus VIVAS?
Continuando no tema sobre idolatria, mas saindo um tanto dos profetas, uma reflexão bem interessante pode ser feita em cima disso com base na Torá, o conjunto dos primeiros 5 livros da Bíblia (Gênesis/Bereishit, Êxodo/Shemot, Levítico/Vayicrá, Números/Bamidbar, Deuteronômio/Devarim).
Nos Dez Mandamentos, o início da Lei dada ao povo de Israel, seu segundo segundo mandamento proíbe explicitamente as Imagens de Escultura, isto é, a idolatria:
“Não terás outros deuses diante de mim. Não farás para ti imagem de escultura, nem alguma semelhança do que há em cima nos céus, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não te encurvarás a elas nem as servirás” (Êxodo 20:3–6)
Com isso a Torá proíbe se (tentar) fazer imagens de Deus. O divino não pode ser reproduzido por meio de uma escultura, ou de uma pintura, isto é, por nenhum meio representacional que seja um artefato humano.
O judaísmo e o islamismo levam isto extremamente a sério. O cristianismo foi muito mais relaxado quanto a isso, representando seu Deus Pai (que é identificado como o Deus de Israel pelos cristãos) sob a imagem de um homem idoso barbudo, e o apresentando ao lado de Jesus e do Espírito Santo entendido como outras pessoas da Trindade, um conceito rejeitado pelo judaísmo e pelo islamismo. No próximo post falarei sobre um dos problemas de representar Deus da maneira cristã, da perspectiva da Bíblia Hebraica.
Mas é curioso que, na Torá, enquanto o ser humano é proibido de fazer imagens de escultura ou mais geralmente artefatos representando Deus, Deus fez Imagens de Si mesmo! Isso é contado no Gênesis:
“E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra.
E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.” (Gênesis 1:26,27)
Talvez você leitor já tenha ouvido ou lido isso milhares de vezes. “O ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus”. Mas o que talvez você nunca tenha se tocado é que a criação do ser humano como Imagem de Deus é paralelo literário (por contraste) à proibição do ser humano tentar criar imagens de Deus!
Então, podemos refletir: por que seria fútil tentar criar Imagens de Deus? Uma resposta natural é dizer que nunca vimos Deus e assim nunca poderíamos também ter a base para uma imagem dele.
Mas uma resposta mais acurada com base na Torá é que, sim, existem várias Imagens de Deus por aí e nós as vemos cotidianamente, ao vermos outros seres humanos e ao vermos a nós mesmos!
E, nesse sentido, vemos Deus diariamente, apenas que não o percebemos como tal. Vemos Deus ao ver sua Imagem refletida no próximo (em especial quando esse próximo está em necessidade de ajuda e apoio) e em nós mesmos (em especial quando agimos justamente). “Onde existe amor, Deus aí está” (que dá nome a um belíssimo conto do cristão russo Leon Tolstói).
Para que estátuas então? Mesmo se fizermos a estátua de um ser humano, essa estátua mesmo com forma física humana não refletirá a Imagem de Deus. O motivo? Por que a imagem é algo INERTE, MORTO. E o Deus de Israel, o Deus da Bíblia Hebraica, é um Deus da VIDA. Sua Imagem só pode ser refletida em seres VIVENTES. Seres com sensações e emoções, que podem amar, chorar, se alegrar, e assim por diante. VIVER EM SUA PLENITUDE.
Mas é digno de nota que o ser humano tem seu papel na produção da Imagem Divina sobre a terra já na sequência do trecho do Gênesis, pois logo em seguida se diz:
“E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra” (Gênesis 1:28).
Por meio do intercurso sexual reprodutivo entre o macho e a fêmea da espécie humana, cheio de amor e atração mútuas, estamos revendo aquela imagem divina original não dividida, “à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou”. E desse ato resulta o nascimento de um novo ser humano, mais uma Imagem de Deus acrescida ao planeta!
Aqui entramos, bem de leve, no domínio místico do judaísmo, a Cabalá/Kabbalah (recheada de metáforas sexuais), segundo a qual a Divindade não é nem masculina nem feminina, mas possui elementos de ambos.
Nesse contexto, faz sentido pensar que, sendo a Imagem original uma fusão do masculino ao feminino, ela é representável pelo ‘encaixe’ sexual (potencialmente) gerador de VIDA. E como não é só a dimensão física estrita que importa à Imagem Divina, a dimensão valorativa do amor, carinho e afeição mútuos também importa para que o ato represente completamente a Divina Imagem. Eis aí a poética mística: é pela fusão momentânea do masculino ao feminino que novas Imagens de Deus são acrescidas ao mundo.
Agora você poderá entender, como coloquei no post [41], porque não é à toa que a Bíblia Hebraica possui um livro de poesia erótica no seu meio (o Cântico dos Cânticos) e que Rabi Akiva há 19 séculos atrás chamava esta poesia erótica de “Santidade das Santidades”, o livro ‘santíssimo’ entre os santos livros que compõem as Escrituras (Mishnah Yadayim 3:5).
O retrato ardente do amor erótico humano espelha, em sua maior intimidade, a própria Imagem de Deus….
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