[51] Deus é Sólido, Líquido ou Gasoso?

A Estrela da Redenção
7 min readSep 9, 2020

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A pergunta que dá título a esse texto pode parecer estranha, mas ela nos ajudará a entender algo muito importante sobre como Deus é retratado na Bíblia Hebraica versus como ele é imaginado pela maioria das pessoas em nossa cultura.

Se perguntarmos para alguém que tipo de imagem vem à mente dessa pessoa quando ela escuta a palavra ‘Deus’, há uma grande chance que ela diga: um homem idoso barbudo.

O responsável por este imaginário é o cristianismo ocidental. Deus Pai (que os cristãos igualam ao Deus da Bíblia Hebraica e entendem como a 1ª pessoa da trindade) é representado pelo catolicismo romano dessa maneira ostensivamente após o renascimento. O nosso imaginário cultural de Deus é o Deus de Michelangelo.

“Creazione di Adam” [A Criação de Adão], Michelangelo, 1508–1512, na Capela Sistina no Vaticano.

O cristianismo ortodoxo oriental retrata ou não Deus Pai a depender do ramo. A maneira mais tradicional de fazê-lo é mais sutil que a ocidental, com a representação dos três anjos que visitaram Abraão simbolizando a Trindade. Algumas representações similares às ocidentais também existem na Ortodoxia Grega, enquanto a Ortodoxia Russa não as admite.

“Troitsa” [A Trindade], Andrei Rublev, 1411 ou 1425–1427, um ícone ortodoxo oriental clássico representando a Trindade cristã como os três anjos que vieram falar com Abraão no livro do Gênesis. A editora Ave-Maria tem um belo livreto dedicado a esse ícone, parte da sua coleção de ícones orientais que recomendo muito.
Pintura no vatoˈpeði (Mosteiro de Vatopedi), no Monte Atos, Grécia, retratando a Trindade cristã e Deus Pai de forma similar à representação católica ocidental mas num contexto ortodoxo oriental.

Uma coisa que as pessoas erroneamente fazem é achar que esta representação renascentista católica é o retrato (mesmo que metafórico) de Deus presente na Bíblia Hebraica. Ainda mais forte: tendemos a considerá-la como A representação pictorial de Deus pelas religiões monoteístas.

Contudo, nem judaísmo nem islamismo tentam representar Deus de nenhuma forma. O YHWH ou Hashem judaico e o Alá islâmico NÃO SÃO NUNCA RETRATADOS EM PINTURAS OU DESENHOS. E isso tem um impacto psicológico muito significativo. Mesmo os cristãos protestantes, muitos dos quais são contra representar Deus Pai, ainda tem essa imagem herdada em suas cabeças. (Até porque consideram que Jesus, um humano, é Deus também e o representam assim)

Em termos de religião comparada, o caso de Hashem/Alá é similar ao Tao chinês: NÃO RETRATADO. Essa comparação com o Tao (feita inclusive pelo existencialista judaico Martin Buber) é relevante para mostrar como a distinção entre religiões monoteístas e não-monoteístas no contexto das Grandes Religiões Mundiais é enganadora. (Mas isso explorarei mais no futuro)

É verdade que, na Bíblia Hebraica, se fala de Deus de uma maneira que serviu de pretexto para a representação artística cristã. Fala-se da mão, pé, braço etc. de Deus. E assim, na nossa imaginação cultural entendemos isso como uma imagem ‘sólida’ mesmo que metafórica.

Para deixar mais claro meu ponto: quando no Ocidente lemos a expressão ‘braço de Deus’, mesmo que entendamos como metáfora, achamos que a imagem usada pela metáfora é uma imagem sólida, por exemplo, parecida a um braço humano. Mas isso não é necessário, nós conseguimos imaginar ‘entidades’ líquidas ou gasosas como tendo forma. Um bom exemplo é quando vemos bocas, asas, braços, etc. em nuvens.

Outro maneira para ver o que está em jogo aqui é que a Bíblia Hebraica não usa apenas metáforas relativas ao ser humano para falar de Deus (sendo que mesmo essas tem como foco mais a antropopatia do que o antropomorfismo, como mostra o existencialista judaico R. Heschel). Existem várias metáforas relativas a elementos naturais, por exemplo, como um rio:

“a mim me deixaram, o manancial de águas vivas, e cavaram cisternas, cisternas rotas, que não retêm águas.” (Jeremias 2:13)

Por que então na nossa imaginação cultural as metáforas retratando partes corporais do ser humano parecem ser as que tem prioridade? Por conta de milênios de cultura cristã priorizando essa metáfora — mas a Bíblia Hebraica NÃO a prioriza.

Agora juntando ambos os pontos: se realmente tentássemos formular qual seria a metáfora-mor de Deus ao longo dos livros da Bíblia Hebraica, livres dessas pressuposições culturais posteriores, eu penso que Deus seria imaginado metaforicamente como GASOSO. O Deus da Bíblia Hebraica é consistentemente retratado como uma COMBUSTÃO.

E isso estava na nossa cara o tempo todo, porque as teofanias envolvem combustão, como se Deus fosse um gás quente e denso (sendo que a teofania central para o judaísmo, a do Monte Sinai, é exemplo paradigmático disso):

“E apareceu-lhe o anjo do Senhor em uma chama de fogo do meio duma sarça; e olhou, e eis que a sarça ardia no fogo, e a sarça não se consumia.” (Êxodo 3:2)

“E Moisés levou o povo fora do arraial ao encontro de Deus; e puseram-se ao pé do monte. E todo o monte Sinai fumegava, porque o Senhor descera sobre ele em fogo; e a sua fumaça subiu como fumaça de uma fornalha, e todo o monte tremia grandemente.” (Êxodo 19:17,18)

“E a glória do Senhor repousou sobre o monte Sinai, e a nuvem o cobriu por seis dias; e ao sétimo dia chamou a Moisés do meio da nuvem. E o parecer da glória do Senhor era como um fogo consumidor no cume do monte, aos olhos dos filhos de Israel.” (Êxodo 24:16,17)

“E o Senhor ia adiante deles, de dia numa coluna de nuvem para os guiar pelo caminho, e de noite numa coluna de fogo para os iluminar, para que caminhassem de dia e de noite.” (Êxodo 13:21)

“Desde os céus te fez ouvir a sua voz, para te ensinar, e sobre a terra te mostrou o seu grande fogo, e ouviste as suas palavras do meio do fogo.” (Deuteronômio 4:36)

“Porque o Senhor teu Deus é um fogo que consome, um Deus zeloso.” (Deuteronômio 4:24)

“Vejam! O Senhor vem num fogo, e os seus carros são como um turbilhão! Transformará em fúria a sua ira e em labaredas de fogo, a sua repreensão.” (Isaías 66:15)

As próprias metáforas retiradas do corpo humano são mescladas àquelas da combustão e do gás:

“Vejam! De longe vem o Nome do Senhor, com sua ira em chamas, e densas nuvens de fumaça; seus lábios estão cheios de ira, e sua língua é fogo consumidor.” (Isaías 30:27)

“Das suas narinas subiu fumaça; da sua boca saíram brasas vivas e fogo consumidor.” (Salmos 18:8)

“havia algo semelhante a um trono que parecia de pedra de safira; e sobre esta espécie de trono havia uma figura semelhante a de um homem, na parte de cima, sobre ele. E vi-a como a cor de âmbar, como a aparência do fogo pelo interior dele ao redor, desde o aspecto dos seus lombos, e daí para cima; e, desde o aspecto dos seus lombos e daí para baixo, vi como a semelhança de fogo, e um resplendor ao redor dele.” (Ezequiel 1:26,27)

E há situações onde Deus também é comparado a um ‘vento’. Isso especialmente ocorre quando se fala da “ruah” de Deus, o termo hebraico que pode ser traduzido como ‘sopro’ ou ‘vento’, mas que se costuma traduzir como ‘espírito’. No próprio Gênesis é essa a figura de linguagem usada, a de um vento sobre as águas, antes da criação da luz no 1º dia:

“E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito [Ruah/Sopro/Vento] de Deus se movia sobre a face das águas.” (Gênesis 1:2)

Isso também pode lançar luz sobre os rituais do antigo Templo envolvendo incenso. No único dia (Yom Kipur) que o Sumo-Sacerdote adentrava o Santo dos Santos, o lugar Santíssimo do santuário onde o próprio Deus residia sobre a arca (no espaço vazio entre os querubins), ele o fazia com o incenso preenchendo o recinto inteiro…

Então de onde veio a metáfora de achar que Deus seria um homem velho? Existe sua ocorrência na Bíblia Hebraica uma vez, no livro de Daniel:

“Eu continuei olhando, até que foram postos uns tronos, e um ancião de dias se assentou; a sua veste era branca como a neve, e o cabelo da sua cabeça como a pura lã; e seu trono era de chamas de fogo, e as suas rodas de fogo ardente. Um rio de fogo manava e saía de diante dele.” (Daniel 7:9,10)

Não é coincidência que o livro de Daniel seja o único exemplar da literatura apocalíptica judaica presente na Bíblia Hebraica, e que o cristianismo enfatiza muito o imaginário decorrente da apocalíptica judaica, inclusive o próprio Jesus histórico centrava sua pregação em torno da vinda do Filho do Homem descrito por Daniel. Então, mais uma vez fica claro que se trata de uma ênfase cristã que é retrojetada para o resto da Bíblia Hebraica.

Por fim, a análise que fiz aqui é um motivo pelo qual gosto de usar pinturas de arte moderna (surrealistas, impressionistas, expressionistas etc.) para ilustrar o blog. Eu penso que, se realmente pudéssemos ver algo transcendental (sob qualquer concepção religiosa disso), seria algo no sentido dessas pinturas que veríamos. No caso da Bíblia Hebraica, o livro profético mais gráfico de todos, o de Ezequiel, corrobora isso com seu imaginário praticamente psicodélico da carruagem divina.

“The Maximum Speed of Raphael’s Madonna” [A Máxima Velocidade da Virgem Maria de Rafael], Salvador Dalí, 1954, o que penso ser uma melhor representação do Transcendental em pinturas.

Me parece inclusive que muito da rejeição automática de cristãos conservadores à arte moderna seja simplesmente uma forma de exaltar a arte renascentista cristã e inspirada na antiguidade greco-romana clássica. Curiosamente a rejeição da arte moderna também foi promovida pelos nazistas, que chegaram a fazer a infame “exibição de arte degenerada” para atacá-la em 1937 e contrastavam essa arte que consideravam ‘judia’ à arte clássica ‘greco-romana’ que apoiavam...

Assim, penso que a questão não é só de entender que certas expressões são metafóricas. Mas o que as próprias metáforas significam. E não encontro na Bíblia Hebraica que tal metáfora seja ‘sólida’. Me parece que a metáfora ‘gasosa’ (vento, nuvem, gás, fogo) é de longe aquela que melhor expressaria até para nossa imaginação o irrepresentável aos olhos humanos.

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Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.