[52] Lei Judaica como Jurisprudência Comunitária

A Estrela da Redenção
4 min readSep 13, 2020

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Em alguns posts antigos, já discuti algumas concepções equivocadas sobre a Lei Judaica. Penso que o cerne desses equívocos está em vê-la como uma legislação salvadora caída do céu.

Na verdade, a Lei Judaica é uma JURISPRUDÊNCIA histórica das comunidades do povo judeu. O objetivo dela NÃO é salvar a alma de ninguém, mas sim regular a vida comunitária judaica.

Eu saliento o termo jurisprudência aqui por um motivo. Muita gente (seja cristãos ou ateus) pega trechos dos 5 primeiros livros da Bíblia (a Torá) e acha que os entende seja para apoiar ou criticar. Trechos sobre o ‘olho por olho’, sobre pena de morte, etc.

O problema é que NÃO FAZ SENTIDO ler as leis da Torá dessa maneira. Existe toda uma Jurisprudência em torno dela, chamada de Halacha, que não consta da Bíblia, mas pode ser encontrada no Talmude (dividido em Mishná e Gemará — mais rigorosamente, o termo ‘Talmude’ refere-se a esta última) e seus comentários clássicos (como o de Rashi).

O Talmude é uma compilação das discussões de tradições orais (a chamada Torá oral, em contraste à Torá escrita presente na Bíblia) envolvendo a interpretação das Mitzvot (‘preceitos’) determinadas na Lei Judaica para governar o cotidiano da comunidade.

Ler apenas como está na Bíblia e achar que entendeu é como pegar o Código Civil Brasileiro e achar que entendeu sem saber como os tribunais decidem sobre aquilo (isto é, a jurisprudência) e como os juristas tem discutido aquilo na doutrina.

Esse aspecto jurisprudencial comunitário da Halacha é tão real que em certas circunstâncias decretos rabínicos podem anular uma lei da Torá (como foi o caso da poligamia entre os judeus askhenazi na idade média), mesmo que se reconheça que a lei antiga era divina! Seu caráter divino ou inspirado pelo divino não a torna imutável. Os humanos podem e devem aperfeiçoá-la.

“Moïse recevant les Tables de la Loi” [Moisés Recebendo as Tábuas da Lei], Marc Chagall, 1966.

Também uso o termo ‘jurisprudência’, porque as pessoas (cristãs e atéias) tendem a tratar os mandamentos do ‘Velho’ Testamento como se fossem uma ‘legislação’. Mas existe uma diferença importante entre sistemas jurídicos que se baseiam em jurisprudência (a Common Law, como nos EUA) e aqueles que se baseiam em legislação (a Civil Law, como o caso brasileiro; apesar do Brasil ter incorporado cada vez mais a jurisprudência como fonte jurídica).

O sistema baseado em legislação depende de um poder legislativo que decrete leis regulando casos gerais ‘de cima para baixo’. Já o sistema baseado em jurisprudência depende de uma sequência de decisões judiciais julgando casos particulares conforme padrões estabelecidos em decisões prévias, assim fazendo o Direito ‘de baixo para cima’.

Isso faz muita diferença na compreensão da ‘Lei’ Judaica. Ela não foi criada como uma legislação fixa duma vez para sempre, mas sim como uma jurisprudência dinâmica que pode ser e foi mudada diversas vezes. Não é preciso esperar uma ‘nova legislação celestial’ para anular aspectos complicados da anterior, uma vez que ela nunca foi uma legislação para início de conversa.

A determinação da Halacha segue um processo de raciocínio intensamente dialético como é facilmente observável por pegar qualquer página do Talmude para ler.

O Talmude basicamente contém MILHARES de sábios (em um intervalo de tempo que vai do 2º século antes da Era Comum — antes mesmo do nascimento de Jesus — até o 6º século da nossa era) debatendo entre si qual seria a decisão aplicável a cada caso para estabelecer as Halachot pertinentes.

Linha do tempo da Jurisprudência Judaica, da antiguidade aos nossos dias

Os Chazal (divididos em Zugot, Tannaim, Amoraim e Savoraim) são os sábios judaicos da Mishná, Talmude e Tosefta. Como é possível observar, é uma linha do tempo que leva séculos de desenvolvimento jurisprudencial como presente no Talmude completo. Sendo que depois deles ainda houve novos desenvolvimentos e mudanças nas eras subsequentes dos Geonim, Rishonim e Acharonim.

E destaco que, sob qualquer visão historiográfica, os 5 livros da Torá (Gênesis/Bereshit, Êxodo/Shemot, Levítico/Vayicrá, Números/Bamidbar, Deuteronômio/Devarim) já estavam em sua forma completa no período anterior ao ano 500 AEC (antes da era comum). Então, da redação completa da Torá escrita até o Talmude temos mais de 1 milênio (11 séculos para ser exato). E como a Torá escrita teve sua compilação e redação (provavelmente) desenvolvida ao longo de 4 séculos, da primeira vez que começaram a pôr a Torá escrita por escrito até o Talmude ser completado, foram-se 15 séculos, isto é, 1 milênio e meio.

Por favor, não é possível que você (seja cristão ou neo-ateu) depois de saber disso ainda ache que sua leitura superficial das páginas da Torá escrita realmente compete com 1 milênio e meio de jurisprudência judaica! (contando até o Talmude; 3 milênios se contar até nossos dias)

De uma vez por todas, entenda: a Torá NÃO é uma legislação caída do céu que o divino decidiu tudo de antemão, mas SIM a fonte da jurisprudência que precisa ser desenvolvida pelo RACIOCÍNIO HUMANO.

Assim, na verdade o que chamamos de Lei Judaica pode ser mais rigorosamente definido como Direito Jurisprudencial Judaico ou Jurisprudência Judaica.

É o Direito histórico do povo judeu, baseado numa jurisprudência milenar, que possibilitou o auto-governo judaico mesmo sem Estado, sem terra e sem poderio militar desde a expulsão dos judeus de Jerusalém pelos romanos no século II até a emancipação judaica no século XIX (quando os judeus viraram cidadãos de seus respectivos países).

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A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.