[53] Jurisprudência Judaica e os Ramos do Judaísmo Contemporâneo
A Halacha, a Jurisprudência Judaica, define detalhada e formalmente como das Mitzvot (‘preceitos’) constantes da Torá deveriam ser seguidas comunitariamente pelo povo judeu (incluindo aqueles preceitos meramente teóricos e não observados há muito tempo ou mesmo nunca observados). Mas como o judeu contemporâneo lida com ela?
Isso é relevante porque as posições da Halacha sobre as Mitzvot não são as únicas possíveis. É possível lidar com esses preceitos pela via da consciência individual ou da comunidade local, o que pode conflitar com o entendimento comunitário-nacional que a Halacha provê.
Outro ponto é que a Halacha ao longo de sua história sofreu mudanças. Deve ela continuar passível de mudanças na era contemporânea ou devemos entender que ela já ficou relativamente ‘fixa’ em compilações de leis judaicas como o Shulchan Aruch de 1563?
Existem quatro respostas centrais* no judaísmo contemporâneo a respeito do papel da Halacha para o judeu contemporâneo: a ortodoxa, a conservadora/masorti, a reformista e a reconstrucionista.
O judaísmo ortodoxo entende que a Halacha continua a ser obrigatória para o povo judeu, mesmo que desprovida de ‘imposição pela força’ (detida pelos sistemas jurídicos seculares modernos). E essa Halacha deve ser a clássica, como constante de códigos como o Shulchan Aruch. Algumas acomodações ao mundo moderno podem ser admitidas (notadamente na corrente da ortodoxia moderna), mas tenta-se mudar o menos possível.
Isso não significa que os judeus ortodoxos concordem em tudo. Existe pluralidade de posições dentro da ortodoxia judaica e alguns rabinos ortodoxos têm posições ‘vanguardistas’ em certos tópicos de Halacha. Mas essa é a ala mais tradicionalista (com alguns grupos dentro dela sendo extremamente tradicionalistas).
O judaísmo masorti/conservador concorda com os ortodoxos que a Halacha ainda seja obrigatória para os judeus. Entretanto, esse ramo considera que a Halacha é um sistema evolutivo que não deve ser ‘fixado’, mas sim continuar mudando para refletir o entendimento comunitário para dada época.
Aqui a ideia é lidar com a modernidade não apenas reativamente como os ortodoxos, mas sim tomar à frente nessa tarefa. Isso seria realmente honrar a tradição, pois continua o que ela já fez diversas vezes no passado.
Para tanto a Halacha conservadora é composta pela Halacha clássica (que os ortodoxos também aceitam) mais as várias diretivas (Responsa) emitidas pelo Comitê de Lei e Padrões Judaicos da Assembleia Rabínica atualizando a jurisprudência clássica pelo estabelecimento de novos precedentes jurisprudenciais.
Aqui usa-se tanto o raciocínio jurisprudencial baseado nos precedentes da Halacha (método clássico) como modernas ferramentas histórico-críticas para analisar a Bíblia e o Talmude (método acadêmico).
O judaísmo reformista entende que a Halacha não é mais obrigatória, e que parte dela caiu em desuso. Neste ramo é dado um papel primordial à consciência individual e à comunidade local na interpretação das Mitzvot (em especial das rituais), com ênfase na ética e na justiça social.
A Halacha clássica não é exigível, mas pode ser seguida voluntariamente. Não existe uma Halacha reformista que substitua a clássica. As responsas de órgãos rabínicos reformistas como o CCAR (Conferência Central dos Rabinos Americanos) podem ser aceitas ou não pelas comunidades locais.
Aqui o judaísmo é interpretado com foco no monoteísmo ético e na preservação e renovação das tradições judaicas num contexto contemporâneo.
O impulso reformista advém da ideia de que o sistema da Halacha fornece parâmetros éticos que nos permitem avaliar mesmo a própria Halacha. Então, a ética da Torá ganha precedência sobre a Jurisprudência Clássica, sem precisar se engajar no procedimento formal baseado em precedentes ou decretos rabínicos para mudar a Halacha. Os ‘princípios’ são mais cruciais que as ‘regras’, como se constataria na própria tradição profética da Bíblia Hebraica.
O judaísmo reconstrucionista entende que a Halacha não é mais obrigatória, contudo, ela ainda deve ter um peso considerável na ‘reconstrução’ da civilização judaica na contemporaneidade. Isso vale inclusive para os seus aspectos rituais, não-éticos. E essa reconstrução da civilização judaica deve fazer uso extensivo também da Agadá (material bíblico e rabínico não-legal, isto é, narrativas, profecias, contos folclóricos, etc. interpretados principalmente pelo Midrash) e de métodos acadêmicos.
O judaísmo reconstrucionista visa uma reinterpretação criativa da Halacha e da Agadá como os dois pólos históricos de uma civilização religiosa que continua se desenvolvendo. Isso o assemelha aos ideais do judaísmo conservador/masorti, do qual ele se originou. Mas se afasta deste (e nisso se aproxima do judaísmo reformista) em dar maior peso à comunidade local e aos judeus individuais na interpretação das Mitzvot sob um enfoque ético, e assim levando a cabo maiores mudanças nesse entendimento.
Eu pessoalmente me alinho mais em ideias e práticas às vertentes judaicas não-ortodoxas, MAS grande parte das fontes usadas aqui (Talmude, Rashi, etc.) contemplam tranquilamente a vertente ortodoxa e a Halacha clássica. Então nesse sentido penso que o blog é suficientemente ‘ecumênico’ entre esses ramos.
*Essa divisão ocorre entre os judeus askhenazi, não sendo aplicável aos judeus sefarditas e mizrahi, e existe uma quinta ala — o judaísmo humanista — que não cobrirei aqui.
Lista com TODOS os posts do blog (links)
Post Anterior [52] Lei Judaica como Jurisprudência Comunitária
Próximo Post [54] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 1- introdução