[56] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 3- O Sentido Literal do Levítico

A Estrela da Redenção
7 min readSep 23, 2020

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Como vimos no post anterior, o apelo para resolver esse debate sobre homossexualidade e Bíblia Hebraica ao nível do sentido literal — onde as pessoas acham fácil concluir que no sentido literal a Bíblia Hebraica exclui completamente a homossexualidade — é uma grande enganação.

As pessoas entendem MUITO MAIS do que está no sentido literal. Elas leem coisas como se estivesse literalmente escrito que NÃO ESTÃO literalmente escritas.

Como vimos a Bíblia Hebraica tem uma norma sobre homossexualidade em apenas 2 versículos do livro de Levítico. No sentido literal, os versículos não falam em homossexualidade feminina. E no sentido literal dos outros livros da Bíblia Hebraica, não existe repetição dessa norma (sendo que repetição de normas entre os livros é comum). Portanto, dizer que a Bíblia Hebraica literalmente condena a homossexualidade de forma absoluta é uma das grandes mentiras da apologética cristã.

Honestamente, o que se pode dizer é:

  1. literalmente não existe NENHUMA norma impeditiva à homossexualidade feminina em toda a Bíblia Hebraica;
  2. uma norma impeditiva à homossexualidade masculina existe especificamente no livro de Levítico, não sendo nunca repetida em nenhum outro livro, o que nos impede de dizer, em nível literal (e, portanto, sem hipóteses auxiliares que os cristãos fundamentalistas introduzem ‘sutilmente’ para validar seus argumentos ‘literais’ por meio de pegadinhas), se os outros livros têm essa normativa em mente ou não.

Agora é a hora de analisar o sentido literal desses trechos de Levítico, com sua norma impeditiva à homossexualidade masculina. Há ali uma proibição absoluta à homossexualidade masculina?

A verdade — chocante para cristãos, mas lugar comum para judeus — é que os versículos de Levítico a respeito do “com homem não te deitarás, como se fosse mulher” (18:22) NÃO ESTÃO FALANDO DE TODOS OS ATOS SEXUAIS ENTRE HOMENS. Sim, é isso mesmo que você leu.

A questão toda gira em torno do hebraico. Neste verso (18:22) e no outro (20:13) encontramos a proibição de “mishk’vei ishah”, geralmente traduzida como ‘deitar como se fosse mulher’.

A frase de 18:22 (que me concentrarei aqui) é “V’et-zachar lo tishkav mishk’vei ishah to’evah hu”:

V’et-zachar (Com homem)

lo tishkav (não te deitarás)

mishk’vei ishah (‘na cama’ de mulher; ou: como deitando com mulher)

to’evah hu (é toevah)

O que significa esse ‘como deitando com mulher’ com um homem? O leitor, provavelmente ensinado a automaticamente ler isso como ‘atos homossexuais’, já deve estar pensando em todo um grande número de práticas homoeróticas imagináveis: masturbação, sexo oral, sexo anal, beijo, bolinação, gouinage, práticas fetichistas ou de BDSM que não envolvem genitais…

Entretanto, o hebraico sempre foi cristalino dentro da tradição judaica de milênios, que lida diretamente com esses textos — com o idioma E com desenvolver uma normativa comunitária a partir deles — como uma realidade VIVA a ser discutida e rediscutida em sua jurisprudência (Halacha): a proibição de “mishk’vei ishah” refere-se única e exclusivamente ao sexo anal entre dois homens. Mais do que isso é ir além da literalidade do texto.

“Mishkav” (משכב) é um termo para “cama”, que é usado para falar da penetração vaginal, por exemplo, em Números 31:18. E “conhecer” [ידע] também é usado para o mesmo fim, tanto sozinho (no que vai depender do contexto), como associado ao termo anterior no qual vira algo como “conhecer na cama”.

Então, a tradução literal de Levítico 18:22 é algo como “com homem não te deitarás na cama de mulher” que pelo contexto (no qual se tratam de relações sexuais proibidas) é entendido como “com homem não te deitarás (como) deitando com mulher”, isto é, “com homem não te deitarás (como) fazendo sexo penetrativo com mulher”.

Nas discussões dos sábios do Talmude (que iniciam de forma oral antes mesmo do nascimento de Jesus, e depois foram postas por escrito), esses significados são esmiuçados.

O termo para “relações sexuais com mulheres” (אשה משכבי) é plural porque se refere tanto à penetração vaginal como à penetração anal, referidas como ‘típica’ (כדרכה) e ‘não típica’ (שלא כדרכה).

Aí ‘penetração’ (העראה) seria o ato que viola proibições de relações sexuais no caso de um parente proibido (Yevamot 54a) e nos casos de relação homossexual masculina e de relação com animais (Sanhedrin 55a).

Já outras atividades eróticas levando à ejaculação mas que não envolvem penetração vaginal ou anal são classificadas como “por meio dos membros” (דרך איברים), e não são classificadas dentro dessa categoria dos atos sexuais proibidos.

O comentarista clássico Rashi comentando Niddah 13b deixa claro que “por meio dos membros” e “relações homossexuais masculinas” (משכב זכור) são categorias diferentes.

Assim, o ato sexual ‘como mulher’ aplicável às relações entre 2 homens é apenas o sexo anal. Mas o Talmude discute um único caso onde um homem se deitar com outro como mulher poderia ser feito de duas formas: relações com um andrógino (Yevamot 83b).

Um andrógino no Talmude é uma pessoa interssexual que possui tanto a genitália masculina como a feminina, mas que para fins jurídicos aplica-se a Halacha (jurisprudência) aplicável aos homens (curiosamente, a tradição judaica tende a ver Adão como originalmente um andrógino). Isso reforça o ponto: essa proibição é violada única e exclusivamente por meio do sexo anal entre dois homens (cis), exceto pelo andrógino, com o qual é possível violá-la de uma segunda forma (o sexo vaginal entre um homem e um andrógino).

Note: o andrógino NÃO é homem, MAS para fins jurídicos pode ser tratado a depender de certos contextos como se fosse, para o cumprimento de certas Mitzvotpreceitos da Torá. A Lei Judaica, como discuti no caso do aborto, é muito mais tranquila com o uso pragmático de ficções jurídicas, ao invés da obsessão comum em terras cristãs em descobrir a ‘verdade’ sobre o que algo essencialmente ou realmente é — p.ex. se o feto é ‘vida’ ou não — para só depois poder decidir o caso.

Esse entendimento é reconhecido por rabinos ortodoxos que seguem a Halacha clássica. Por exemplo, o Rabino Avraham Steinberg (Encyclopedia of Medical Halakha [em hebraico]) e o Rabino Chaim Rapoport (no livro “Judaism and Homosexuality: An Authentic Orthodox Approach” de 2004) comentam que essa normativa bíblica é direcionada apenas e exclusivamente ao ato sexual penetrativo anal entre dois homens.

A Halacha atualizada pelo judaísmo conservador se guia pela Responsa Combinada dos Rabinos Elliot N. Dorff, Daniel S. Nevins e Avram I. Reisner (e aprovada pelo Comitê de Leis e Padrões Judaicos em 2006). Ali também é mostrado como a normativa bíblica refere apenas e exclusivamente ao ato sexual penetrativo anal entre dois homens.

É possível ler o texto no hebraico de outra forma? Apenas mais restritivamente. Existem leituras acadêmicas usando o método histórico-crítico e literário que tentam examinar como o sentido original dessa expressão (ou o que estava em mente ao falar disso) em seu contexto original no antigo Israel talvez se ligasse apenas a atos de penetração anal ocorridos num contexto de cultos pagãos ou ‘de forma humilhante’.

Vou comentar sobre isso mais pra frente nessa série, pois isso toca num ponto importante sobre o aspecto jurisprudencial da Torá (a meu ver, mais do que em hipóteses literárias sobre o texto da Torá, por mais interessantes que sejam).

Mas independente de um eventual sentido original que no contexto restringisse ou não o escopo dessa proibição, o fato é que a proibição (seja qual sua extensão) se refere APENAS E EXCLUSIVAMENTE ao sexo anal entre dois homens. É o significado de “mishk’vei ishah”.

E curiosamente o texto de Levítico 18:22 em que me foquei traz apenas uma proibição para o lado ativo da penetração anal. É apenas o outro verso, Levítico 20:13, que fala também do passivo ao penalizar ambos.

Isso inclusive é base para algumas hipóteses histórico-críticas que consideram que o verso 20:13 foi uma adição posterior ao conjunto de leis (o ‘Código da Santidade’) compiladas no livro de Levítico (veja o paper ““And with a male you shall not lie the lying down of a woman”: On the meaning and significance of Leviticus 18:22 and 20:13", de Saul M. Olyan, 1994).

Mas para nossos propósitos neste post importa apenas que esse verso esteja de fato no texto como foi legado a nós, e que os rabinos do Talmude eram sensíveis também à ausência do pólo passivo em Levítico 18:22. Por isso, eles discutiam em qual verso exatamente se encontraria, por inferência (isto é, não diretamente), a proibição para o lado passivo da penetração anal entre dois homens, que a penalização para ambos no verso 20:13 já pressuporia (Bavli Sanhedrin 54b).

Assim, podemos concluir: o significado dos dois trechos de Levítico que as pessoas usam para dizer que a Bíblia Hebraica inteira condena absolutamente a homossexualidade, na verdade se refere EXCLUSIVAMENTE ao sexo anal entre dois homens.

Os trechos de Levítico NÃO ESTÃO se referindo a beijo, masturbação, sexo oral, bolinação, gouinage, práticas BDSM ou fetichistas não penetrativas, etc. entre homens.

As mais variadas formas de erotismo homossexual masculino não-penetrativo e todas as formas de erotismo homossexual feminino ESTÃO LIBERADAS NO PRÓPRIO SENTIDO LITERAL de Levítico. Não foi Levítico quem as proibiu.

“The Metamorphosis of the Lovers” [A Metamorfose dos Amantes], Andre Masson, 1932.

De fato, o ‘problema’ de Levítico gira em torno do sexo anal entre 2 homens. Por que? Mais para frente me engajarei em tentar decifrar isso (no que serei auxiliado pela pesquisa histórico-crítica e literária acadêmicas). Mas existe uma questão talvez até mais premente: se os textos se referiam apenas a isso, como acabou o inteiro espectro do homoerotismo entrando numa proibição originalmente tão limitada? É o que veremos no próximo post.

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A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.