[57] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 4- Homoerotismo Masculino Não-Penetrativo

A Estrela da Redenção
6 min readSep 28, 2020

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Como vimos no último post, os 2 versículos do livro de Levítico que são usados para dizer que a Bíblia Hebraica em seu sentido literal condena de forma absoluta a homossexualidade na verdade se referem APENAS E EXCLUSIVAMENTE ao sexo anal entre 2 homens. Não tratam de beijo, bolinação, sexo oral, masturbação, gouinage, etc. entre dois homens, isto é, nenhum ato homossexual masculino não-penetrativo, e também não tratam de absolutamente nenhum ato homossexual feminino.

Então, se o ‘problema’ de Levítico gira em torno do sexo anal entre 2 homens, como acabou o inteiro espectro do homoerotismo entrando numa proibição originalmente tão limitada? Este e o próximo post dirão respeito a isso.

Neste post falarei especificamente sobre como a proibição original foi estendida para cobrir outros atos homossexuais masculinos que não fossem o sexo anal. Nos próximos, falarei sobre como foi estendida para atos homossexuais femininos (lésbicos).

Como já discuti em post anterior acerca da Halacha, a jurisprudência judaica, as leis da Torá não são aplicadas exatamente da forma como estão escritas. Elas tem de ser desenvolvidas conforme o raciocínio humano para aí sim poderem ser aplicadas ou não.

Por isso a necessidade de uma ‘jurisprudência’, examinando casos particulares para decidir se aplicamos ou não certa norma a eles. E, sendo raciocínio humano, a elaboração normativa a partir da Torá pode e deve ser modificada ao longo do tempo conforme novos fatos e elaborações melhores veem à tona.

Isso significa que no contexto judaico, antes mesmo do nascimento de Jesus (e, por óbvio, do cristianismo), encontramos a ideia de certas obrigações serem meramente rabínicas. Os sábios no passado as acrescentaram tendo algum propósito em mente. E um motivo proeminente entre eles era a de ‘erguer cercas em torno das obrigações da Torá’. Então… se um homem beijar outro homem, boliná-lo, masturbá-lo, etc. pode conduzir à prática do ato sexual anal entre eles (proibido em Levítico) seria mais prudente não fazer esses atos mesmo que não sejam o objeto da proibição original.

Dessa forma, os rabinos ACRESCERAM uma penalização a esta conduta de ‘se aproximar [de fazer o intercurso sexual proibido]’. Mas ESTANDO CONSCIENTES DO SENTIDO LITERAL DAS ESCRITURAS eles não estenderam a mesma penalização que Levítico 20:13 prevê para “mishk’vei ishah”, ‘deitar como [se deita com] mulher’, isto é, o sexo anal entre 2 homens.

A penalização rabínica para ‘se aproximar [de fazer o intercurso sexual proibido]’ é mais leve que a penalização bíblica para o intercurso sexual proibido (Shulhan Arukh, Even haEzer 20), o que inclusive reforça o ponto do post anterior de que tais condutas são distintas.

De fato, essa distinção fica extremamente clara no contexto judaico. Foi no contexto cristão que se perdeu essa sutileza ao lidar com o texto bíblico, misturando-se as estipulações rabínicas com as bíblicas.

(Sobre a penalização, nesta mesma série ainda comentarei que a própria penalização bíblica foi na prática tornada sem efeito pelos rabinos, abrandando assim o previsto em Levítico 20:13)

Agora é importante perceber que, como estamos tratando de JUDAÍSMO, a possibilidade de diversas opiniões é prevista desde o início. Afinal, o próprio Talmude (que, como não canso de lembrar, compila discussões orais iniciadas antes mesmo do nascimento de Jesus e que seguem por séculos até sua finalização por escrito na Guemará) é marcado pela dialética de vários sábios discutindo entre si qual a Halacha aplicável.

Por conta disso, encontramos diferenças de opinião entre os comentaristas medievais clássicos sobre a fonte dessa proibição. Rambam (no Ocidente mais conhecido como Maimônides) tenta encontrá-la na própria Torá. Em Levítico 18:22 ou 20:13 como os cristãos tentam fazer? Não. Ele tenta estabelecer isso interpretando Levítico 18:6 como uma referência implícita:

“Nenhum homem se chegará a qualquer parenta da sua carne, para descobrir a sua nudez. Eu sou o Senhor.” (Levítico 18:6)

Como o leitor pode ver tranquilamente, o sentido literal de Levítico 18:6 NÃO é sobre atos homossexuais. Ele explicitamente se refere a atos incestuosos. Mas Rambam ali tentou encontrar, não-literalmente, uma referência implícita a qualquer parceiro proibido, não somente os parentais.

Por conta disso ele lista uma obrigação geral de ‘não derivar prazer de intimidade próxima (mas não sexual-penetrativa) com um parceiro proibido’ como a Mitzvot negativa nº 353 (Sefer haMitzvot, Negative Commandment 353; veja também Mishnê Torah, Hilkhot Issurei Biah 21:1).

Já outro comentarista medieval, Ramban (mais conhecido no Ocidente como Nahmânides), contradiz esta opinião do Rambam. Sim, os acrônimos são bem parecidos, então não confunda: citei anteriormente a posição de RambaM (acrônimo para Rabino Moses ben Maimon, ‘R. Moisés filho de Maimon’), e agora vou citar a posição contrária de RambaN (acrônimo para Rabino Moses ben Nahman, ‘R. Moisés filho de Nahman’).

Rambam. Retrato tradicional.
Ramban. Pintura no muro do auditorium em Akko, onde viveu.

Ramban, comentando diretamente o Sefer HaMitzvot do Rambam, considera que não é possível derivar a obrigação de ‘não se aproximar’ de nenhum texto da Torá, nem mesmo implicitamente, e que a argumentação de Rambam quanto a isso é equivocada (Hasagot HaRamban on Sefer HaMitzvot).

Em apoio disso Ramban cita dois amoraitas (sábios que viveram entre os anos 200 e 500, entre a escrita da Mishná e da Guemará — que compõem o Talmude) que afirmam explicitamente que o texto de Levitico 18:6 está se referindo eufemisticamente às próprias relações sexuais proibidas (R. Pedat, Shabbat 13a; R. Yose ben R. Bun, Sanhedrin 7:7). Também acrescenta que essa posição dos dois amoraitas não é refutada nos textos talmúdicos relevantes, e que o texto de midrash de Sifra usada por Rambam não é citado no Talmude.

A conclusão de Ramban então é que a Torá não proíbe esse tipo de intimidade não-sexual (penetrativa) com os parceiros proibidos. A proibição é uma interpolação rabínica (Gaon de Vilna, Biurei HaGR”A to Shulhan Arukh, E.H. 20:1).

Para mais sobre o argumento de Ramban e os desdobramentos do debate Ramban x Rambam, veja a discussão detalhada na Responsa Combinada dos Rabinos Elliot N. Dorff, Daniel S. Nevins e Avram I. Reisner aprovada pelo Comitê de Leis e Padrões Judaicos do judaísmo conservador/masorti em 2006.

Dessa forma, torna-se claro que a intimidade homossexual masculina não-penetrativa é uma obrigação acrescida pelos rabinos do passado. Sua principal intenção era evitar que os judeus chegassem perto de fazer o ato proibido pelos textos de Levítico 18:22 ou 20:13, que eles sabiam ser exclusivamente o sexo anal penetrativo. Então, acrescentaram esta ‘cerca’: faça/deixe de fazer um pouco mais do que se é de fato obrigado para evitar descumprir a obrigação.

Assim, resta mais que demolido o argumento da apologética cristã fundamentalista usual (com o qual muitos neo-ateus concordam): os textos de Levitico visavam o ato sexual anal entre 2 homens, e quaisquer outros atos íntimos são proibidos apenas de forma rabínica, não bíblica!

Ou seja, se um cristão protestante ou evangélico fundamentalista quer seguir apenas a Bíblia, é apenas o sexo anal entre 2 homens que está proibido na Torá em particular e na Bíblia Hebraica em geral (como disse no post [54], o 1º desta série, só abordarei o Novo Testamento mais pro fim da série).

Mas isso também tem consequências para os cristãos ortodoxos e católicos que seguem a Tradição da Igreja: a sua Tradição (que complementa a Bíblia cristã) endossou tais obrigações não-bíblicas porque pegaram isso dos rabinos talmúdicos e/ou das críticas de filósofos gregos a práticas homossexuais, mas NÃO porque isso já estava na Bíblia Hebraica. (Novamente: analisarei o cristianismo apenas ao fim da série)

E veremos também como uma proibição similar a esta aplicável exclusivamente a dois homens (para atos de intimidade sexual não-penetrativa) foi estendida para o caso de duas mulheres. Os próximos 2 textos se ocuparão disso.

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A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.