[58] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 5- E as Lésbicas?

A Estrela da Redenção
4 min readSep 29, 2020

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Como vimos no post anterior, as mais diversas práticas homoeróticas masculinas não-penetrativas não estavam contempladas na proibição original da Torá presente em Levítico (que era apenas e exclusivamente sobre sexo anal entre 2 homens).

A proibição dessas práticas foram acrescidas pelos rabinos como uma forma de erigir uma cerca, evitando atos de intimidade que pudessem levar ao ato biblicamente proibido. Portanto, a proibição de tais práticas é meramente rabínica, não bíblica, e seu propósito era antes de tudo pragmático.

Neste e no próximo post, veremos como um desenvolvimento similar de obrigação meramente rabínica aplica-se ao caso da lesbianidade, a homossexualidade feminina.

Bandeira Lésbica, uma variante de 2010.

Como eu disse no post [55], os textos de Levítico (18:22; 20:13) usados para dizer que a homossexualidade é absolutamente rejeitada no sentido literal da Bíblia Hebraica na verdade deixam de fora as lésbicas. O texto literalmente não fala do caso de duas mulheres, apenas falando do caso de dois homens.

Uma tentação particularmente cristã aqui, muito comum de ser empregada na apologética cristã (que alguns ateus e céticos ‘compram’ também, mesmo não sendo cristãos), é de dizer: “mas os textos de Levítico proibindo um homem de se deitar com outro homem deitando como com mulher proíbem também o caso lésbico! É só que o texto da Bíblia Hebraica se refere aos homens como o receptor na comunicação por simples costume, e então sempre que tem algo falando dos homens, temos de por simetria aplicar às mulheres. Por exemplo, quando os Dez Mandamentos falam em não cobiçar a mulher do próximo (tendo como receptor explícito o homem), quer dizer não cobiçar o homem ‘da próxima’ também (nesse caso tendo como receptor implícito a mulher)!”

O que posso dizer…. Bem, esse é um ótimo exemplo de como a apologética cristã (seja articulada por cristãos ou por neo-ateus e afins que a ‘compram’ como se fosse a interpretação correta das Escritas) é simplesmente MÍOPE e UMBIGUISTA.

Essa é uma leitura completamente ANTI-JUDAICA das Escrituras JUDAICAS. Os judeus, cuja cultura produziu tais livros, não leem dessa forma esses trechos da Torá. Os judeus sempre foram muito claros quanto ao que está literalmente escrito e o que não está literalmente escrito.

E como se não bastasse, essa intepretação apologética cristã também é INTERNAMENTE INCOERENTE. Ninguém, literalmente NENHUM CRISTÃO, a usa de forma consistente. A apologética emprega esse critério seletivamente conforme lhe é conveniente.

Então, como é bem conhecido, a Torá permite a poligamia, de um homem com mais de uma mulher. Cadê os apologetas dizendo, então, que a Torá literalmente permite também a poliandria, de uma mulher com mais de um homem? Ou o costume do casamento por levirato, no qual uma mulher casa com o irmão de seu falecido esposo, porque não teve filhos com este último. Cadê os mesmos apologetas dizendo, então, que a Torá também estabelece o caso paralelo, de um homem casar com a irmã de sua falecida esposa, porque não teve filhos com esta última?

Aí você pode estar pensando: mas e o caso da cobiça? A mulher pode cobiçar o homem do próximo então? Bem… nos Dez Mandamentos a proibição que de fato está ali é não cobiçar a mulher do próximo. Ponto. No texto original dos Dez Mandamentos, é isso que está proibido e a tradição judaica entende dessa forma. Agora, nós consideramos ruim fazer um monte de coisas que não estão escritas nos Dez Mandamentos. Cobiçar o homem de alguém também.

Nesse caso dos Dez Mandamentos é possível também tentar dizer que as mesmas razões que temos para não cobiçar a mulher do próximo se aplicam a não cobiçar o homem da ‘próxima’. Afinal, é o mesmo ato de que estamos falando, ‘cobiçar’, que é um ato gênero-neutro. Então, mesmo que não esteja literalmente escrito o caso de cobiçar o homem, ainda poderia se tentar dizer que teríamos o mesmo fundamento de não cobiçar a mulher para não cobiçar o homem.

É possível tentar argumentar por aí, mas também pode-se contra-argumentar que o sentido de ‘cobiçar’ na verdade tem mais a ver com querer tomar para si (com esforços ativos nesse sentido) pessoas ou coisas sobre as quais alguém teria o papel de representar legalmente. Daí como a esposa era representada legalmente pelo marido ela é mencionada como objeto desta ‘cobiça’, mas o marido não, pois ele não era representado legalmente pela esposa.

Agora, mesmo se alguém quisesse discutir isso no caso da cobiça (com as ressalvas que eu fiz; em outra oportunidade posso escrever mais sobre o entendimento judaico da cobiça), o caso da homossexualidade NÃO É ANÁLOGO a esse.

O ato proibido no Levítico claramente não é gênero-neutro. O ato proibido é “mishk’vei ishah”, ‘deitar como [se deita com] mulher’, e É IMPOSSÍVEL uma mulher cometer “mishk’vei ishah”, pois a interpretação gramatical desse termo é a de relações sexuais que seriam ‘como as que se fazem com mulher’ mas sem uma mulher envolvida.

Portanto, o ato proibido em Levítico é um ato que apenas homens (ou, mais precisamente, pessoas com pênis, o que inclui o andrógino, como vimos no post [56]) podem cometer, pelo SIMPLES SIGNIFICADO DAS PALAVRAS.

Por conta disso, os rabinos que acrescentaram uma proibição aos atos homossexuais lésbicos NÃO tentam fundamentar isso nos textos de Levítico 18:22 ou 20:13.

Onde eles tentaram encontrar fundamento? É o que veremos no próximo post.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.