[59] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 6- Lesbianidade e Tradição Judaica

A Estrela da Redenção
7 min readOct 8, 2020

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Como vimos no post anterior, os rabinos que falaram de uma proibição aos atos homossexuais lésbicos NÃO tentam fundamentar isso nos textos de Levítico 18:22 ou 20:13, dado que esses versículos claramente se referem apenas à prática homossexual masculina (mais especificamente, ao sexo anal entre dois homens).

A Bíblia Hebraica, como já comentei no post [55], não apresenta nenhum tipo de proibição aos atos homossexuais lésbicos. Ao nível literal, não encontramos isso em nenhum de seus livros. Então, como surgiu dita proibição?

A regra restritiva à lesbianidade que se consolidou na tradição judaica é, na verdade, baseada em comentários medievais clássicos que tentam fazer uma inferência a respeito disso a partir do texto vago de Levítico 18:3:

“Não fareis segundo as obras da terra do Egito, em que habitastes” (Levítico 18:3)

Vamos tentar entender melhor como isso aconteceu…

O Talmude, que assenta a jurisprudência oral da Torá (Halacha), passa bastante ao largo dessa questão. Os sábios de outrora parecem basicamente desinteressados em relação a isso.

No tratado Yevamot os sábios discutem a categoria de ‘zona’, uma mulher que teve relações sexuais proibidas. Essa categoria é relevante por impedir a referida mulher de se casar com um sacerdote. Aí cita-se a questão de se uma mulher teve relações com outra, se isso a tornaria inapta para o casamento com um sacerdote.

A resposta? Na interpretação mais rígida de R. Elazar, um homem não casado ter relações sexuais com uma mulher não casada sem ter como objetivo casar com ela é suficiente para fazer a mulher recair na categoria de ‘zona’ e assim inapta para o casamento com um sacerdote (não confunda: rabinos não são sacerdotes). Porém, MESMO PARA ELE, isso apenas se aplica à relação sexual pré-conjugal com um homem, pois, se a relação sexual tiver sido com outra mulher, é mera ‘licenciosidade’ e, assim, é permitido que ela se case com um sacerdote. (Yevamot 76a)

Umas palavrinhas antes de seguir.. Essa é outra verdade ‘inconveniente’ para os religiosos fundamentalistas especialmente cristãos. A ideia de ser pecado fazer sexo antes do casamento, bem… também têm pouco apoio na Bíblia Hebraica! Você pode lê-la de cabo a rabo e isso nunca fica claro. Sim, o ideal bíblico para o sexo gira em torno do casamento e da família. Mas você tem dificuldade de encontrar uma condenação explícita ao sexo pré-conjugal.

Na Torá isso é tratado mais como uma questão cível, como nesse caso do Talmude onde pode ser um impeditivo ao casamento com um sacerdote. Em outro momento, a virgindade da mulher pode ser evidência de seu cometimento ou não de adultério APÓS já ter noivado com certo homem, o que era uma matéria criminal pelo rompimento do pacto conjugal que já inicia no noivado (é disso que trata o verso de Deuteronômio 22:13–21, SISTEMATICAMENTE MAL INTERPRETADO por fontes cristãs como sendo sobre a obrigatoriedade perante Deus da virgindade pré-conjugal; para um antídoto, veja o comentário de Rashi a respeito). Outro dia faço um post mais detalhado sobre esse outro tema bem interessante.

Então, dado esse quadro, é possível compreender a postura relaxada do Talmude. Não se tratava de um ato perfeitamente aceitável para eles, mas, ao mesmo tempo, era possível ser leniente, pois é mera ‘lúxuria’.

Por enquanto estou evitando entrar nas razões que circundam essa questão da homossexualidade na Bíblia e no judaísmo (pois tratarei disso mais adiante), mas aqui já é possível ver o aspecto bem mundano da Lei Judaica: relações lésbicas não podem gerar filhos ilegítimos, então elas não são preocupantes.

Contudo, na idade média, os Comentaristas clássicos se viram confrontados com a questão de como lidar com esse tipo de ato perante a Lei Judaica. Analisando a tradição judaica como um todo, Rambam (Maimônides) vai juntar o verso citado acima de Levítico 18:3 ‘não fareis conforme as obras do Egito’ com um texto de Midrash (que geralmente tratam de Agadah, exposição narrativa não-normativa) dizendo que entre as práticas do Egito estavam um homem casar com outro homem, uma mulher com outra mulher, um homem com uma mãe e sua filha, e uma mulher com dois homens (Sifra, Acharei Mot, 8:8).

Calma, vamos respirar de novo, porque realmente é meio complicado.

Nós estamos diante da ÚNICA passagem na Literatura Rabínica Clássica fazendo uma referência proibitiva a um aspecto da lesbianidade.

A jurisprudência judaica compilada no Talmude não faz nenhuma proibição. Mas temos esse texto de Midrash (um tipo de texto que geralmente contém uma exposição narrativa ampliada do texto bíblico; entretanto, nesse caso em específico um Midrash-Halacha que aborda leis) que elenca entre as práticas do Egito o CASAMENTO LÉSBICO!

Estátua (egípcia) de duas mulheres, Idet e Ruiu, retratadas da forma típica para casais casados.

Aqui o problema provavelmente é que essas mulheres não teriam filhos por não se casarem com homens, e sim com mulheres. Dado que um dos grandes objetivos da Lei Judaica é garantir a perpetuação do povo judeu, isso certamente não é bom.

Então, um texto de Midrash (ou seja, um texto que não firma jurisprudência da Lei Judaica) faz esse comentário negativo à prática de casamento lésbico no Egito. Como uma crítica social aos costumes daquele povo

Aí podemos voltar ao Rambam. Lá pelo ano 1.000 e tanto da nossa era (idade média), Rambam vai compilar a Lei Rabínica em sua obra magna Mishnê Torá e se esforça para achar uma maneira de fundamentar uma proibição geral da intimidade sexual lésbica.

Rambam encontra só essa referência não-legal para o casamento lésbico, mas a usa para interpretar expansivamente Levítico 18:3 de modo a afirmar que atos lésbicos são proibidos (Mishnê Torá, Issurei Biah 21:8).

Note que o texto de Levítico 18:3 no seu contexto expositivo original está chamando de práticas do Egito aquelas práticas que ele logo em seguida vai listar e proibir. Interpretar esse verso como Rambam o faz é sair do sentido literal (algo que os Midrashim de fato fazem, por serem interpretações homiléticas do texto bíblico).

E por fim Rambam considera que a penalização dessa conduta é a mesma que a feita para — adivinhem — ‘se aproximar [de cometer um ato sexual proibido]’ que vimos no post [57]. Mesmo Rambam proibindo os atos lésbicos, ele NÃO PODERIA DIZER que aqueles atos são proibidos por serem um dos atos sexuais proibidos. Então, a própria penalidade para tal não pode ser àquela para as relações sexuais proibidas, mas sim similar àquela para o mero ‘se aproximar’ de relações sexuais proibidas sem de fato incorrer nelas.

Entretanto — e aqui vemos em ação as engenhosidades de raciocínio dos sábios, para o bem ou para o mal — Rambam também admite que existe uma diferença na base para penalização dessas duas condutas: no caso do ‘se aproximar’ (que pega práticas sexuais não-penetrativas entre dois homens), de fato há uma relação sexual proibida pela Torá que os sujeitos envolvidos podem quebrar e serem penalizados de forma muito mais grave (o sexo anal entre dois homens). Por outro lado, no caso dessa proibição à prática homossexual feminina, não existe nenhuma forma das mulheres envolvidas se engajarem numa relação sexual proibida pela Torá com tais atos.

Então, mesmo que o CONTEÚDO da penalização seja o mesmo entre essas duas categorias, na verdade, apenas a pena para o caso de ‘se aproximar’ seria a aplicação de uma penalidade bíblica. No caso lésbico, Rambam admite, a penalização é apenas rabínica, e ainda mais: feita sob o título genérico de poder frear manifestações de rebeldia dentro da comunidade!

Mesmo que discordemos de Rambam (como veremos que Ramban discorda), ele é muito sincero quanto a sob que fundamento algo está sendo considerado normativo ou não. Esse é um aspecto no qual a tradição judaica é MUITO TRANSPARENTE.

Inclusive Rambam quando mais novo em seu comentário à Mishná deixava mais claro que tal penalização para as lésbicas não existia nem biblicamente nem rabinicamente (Peirush HaMishnayot L’HaRambam para Sanhedrin, Chapter 7). Mas a posição de sua obra de maturidade já citada, Mishnê Torá, acabou sendo uma influência decisiva para essa proibição e penalização entrarem na tradição judaica pela via de estipulação rabínica.

Como já vimos no post [57], Ramban (Nahmânides) discordava de Rambam sobre a questão da proibição de ‘se aproximar’, e ele discorda de Rambam aqui também. Esse texto de midrash da Sifra não é citado no Talmude, e por isso não poderia ser usado como fundamento legal para a proibição. Mais uma vez Ramban defende (contra Rambam) o sentido mais natural do texto bíblico, considerando proibições desse tipo como rabínicas, não previstas nas Escrituras nem mesmo indiretamente.

O comentário de Rashi (também da idade média) visa elucidar o sentido literal ou mais próximo do literal da Torá (sentido peshat conforme regras de interpretação tradicionais judaicas) e por isso evita ao máximo interpretações do Midrash.

Rashi entende o verso de Levítico 18:3 como fazendo referência às práticas supersticiosas do povo do Egito e de Canaã. Nisso ele segue os sábios do Talmude, que consideravam que essas práticas dos egípcios e caananitas (chamadas por eles de ‘estatutos dos amoritas’) a não serem copiadas eram práticas de idolatria (Shabbat 67ab; Torath Kohanim 18: 139).

Então, considerando tudo o que vimos acima, é possível afirmar conclusivamente que a emergência de uma proibição para os atos lésbicos NÃO É BÍBLICA, mas sim meramente rabínica.

No caso do judaísmo, essa proibição num sentido forte surgiu há menos de 1.000 anos atrás. Mas o cristianismo neste caso apresenta uma disparidade bem maior com o judaísmo: Paulo em sua epístola aos Romanos cita as relações lésbicas de forma condenatória (Romanos 1:26–27) e o fundamento para tanto parece… helenista/da filosofia grega. Essa ideia de “uso.. contrário à natureza” para criticar práticas homossexuais referida pelo apóstolo Paulo não é judaica, mas greco-romana.

Vou voltar a isso mais para frente ao final desta série, quando abordarei o Novo Testamento/cristianismo. Mas aqui cabe deixar esse contraste: O próprio Novo Testamento há quase 2.000 anos atrás (ao tempo da própria fundação do cristianismo), traz uma referência negativa à lesbianidade. Enquanto isso, a Bíblia Hebraica e a tradição judaica que a interpreta deixou o assunto quieto até 1.000 anos depois do cristianismo nascer. Mas nessa época (menos de 1.000 anos atrás) acabou surgindo essa interpretação mais próxima da tradição cristã.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.

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