[6] Questionando Deus, em favor dos homens
Os posts anteriores mostraram que a Lei Judaica, mesmo tão rigorosa no valor de face, não dispensa a misericórdia e a graça em sua interpretação. O castigo previsto (isto é, a consequência mesmo que justa) nem sempre se aplica. E a pessoa justa, boa, defende os outros mesmo de Deus. Como os sábios do Talmude com a própria Lei, suavizando-a em benefício de suas comunidades.
Mas quão bíblica seria essa atitude? Bem, podemos ver isso na raiz no próprio Moisés, o maior de todos os profetas na Bíblia Hebraica: é ele quem recebe a Lei e a ensina.
Com isso poderemos já exemplificar como uma leitura existencial (não comprometida se tais acontecimentos realmente se deram como fato histórico ou se são lendas baseadas em fatos reais etc.) consegue extrair perspectivas interessantes por enfatizar a narrativa num sentido literário. Deus na Bíblia Hebraica é um personagem muito mais surpreendente do que nos foi ensinado.
Na história do pecado do bezerro de ouro, o povo trai Deus (que acabara de os libertar da escravidão no Egito) em favor de um bezerro de ouro que eles mesmos fizeram. Deus fica irado, zangado, se sentindo traído e enciumado pelo bezerro de ouro. E fala para Moisés no Monte Sinai: “Agora, pois, deixa-me, para que o meu furor se acenda contra [o povo], e o consuma; e eu farei de ti uma grande nação.” (Êxodo 32:10)
Moisés poderia ter dito: “tem razão, eles fizeram algo errado, então pode punir!” Muitos religiosos têm essa postura de justificar Deus. Mas Moisés era diferente. Ele ARGUMENTA com Deus, invocando tanto a falta de lógica em Deus destruir o povo logo depois de tê-lo salvo, como a necessidade de Deus cumprir suas próprias promessas. E conclui:
“Torna-te do furor da tua ira, e arrepende-te deste mal contra o teu povo.” (Êxodo 32:12)
Sim, Moisés diz que Deus está ERRADO e pede para ele se arrepender. Depois de ter sido assim questionado, Deus fulmina Moisés, como a caricatura diz? Não. Ao contrário:
“Então o Senhor arrependeu-se do mal que dissera que havia de fazer ao seu povo.” (Êxodo 32:14)
Deus se ARREPENDEU. Isto é, Deus ACEITOU QUE ESTAVA ERRADO.
Alguns leem isso e começam a pensar “mas não ensinaram que Deus era perfeito? Como pode Ele se arrepender?” Isso é perder o ponto. Ao contrário, SINTA o que isso significa em termos de como os antigos hebreus conceberam a relação entre o divino/transcendente e o humano.
Imaginar um Ser Supremo com ‘S’ maiúsculo, o Deus bíblico de pura santidade e totalmente supremo, que nunca é desafiado por outros deuses, mas que se deixa desafiar por simples humanos! É a consequência de Deus estar em busca do homem para entrar numa relação amorosa com eles. Aceitar o lado humano da equação também. Incluindo ser desapontado.
E ao mesmo tempo o homem mais justo naquele momento, o homem por quem Deus deu a Lei, é retratado como o homem que amava tanto o povo que se opunha mesmo a Deus em favor do povo!
Ao contrário daquela noção de ‘a salvação é individual, importe-se com a SUA salvação e a SUA relação com Deus’, Moisés não queria uma salvação que fosse SUA se ela não fosse NOSSA também, a salvação de sua comunidade e de seus próximos. Afinal, o maior mandamento da Lei não é exatamente o amor ao teu próximo? E acrescento: mesmo CONTRA Deus. Como Moisés exemplifica desafiando Deus:
“Agora, pois, perdoa o seu pecado [do povo]; se não, risca-me, peço-te, do teu livro, que tens escrito.” Êxodo 32:32
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