[61] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 8- A Bíblia NÃO fala da homossexualidade atual

A Estrela da Redenção
5 min readOct 11, 2020

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Como vimos no post anterior, a inteira linhagem de tradição judaica que começa na Bíblia Hebraica (mais especificamente, o livro de Levítico) e desagua no Talmude e nos comentaristas medievais (da Bíblia Hebraica e do Talmude) NÃO fala de homossexualidade e nem mesmo de atos homossexuais como uma categoria unificada de ‘atos sexuais com pessoas do mesmo sexo’.

Essa diferença cultural e histórica é de suma importância para entender a questão do que a Bíblia fala e não fala sobre homossexualidade. Certos aspectos estranhos, como o foco no ato do sexo anal ou o tratamento exclusivo do caso homoerótico masculino, só fazem sentido quando prestamos atenção a esses contextos.

Deveria ser óbvio e claro para qualquer um que a Bíblia NÃO fala sobre a homossexualidade atual. Quando a Bíblia Hebraica (apenas no livro de Levítico) fala disso, sua referência é ao contexto da homossexualidade masculina no mundo antigo. (O mesmo vale para o Talmude)

Isso não é uma diferença meramente superficial como os fundamentalistas e os neo-ateus acham. Você pode vasculhar a Bíblia Hebraica inteira e o Talmude inteiro (e mesmo o Novo Testamento e a literatura cristã clássica se quiser). Você NÃO vai encontrar ali uma resposta para perguntas como “mas e se homens homossexuais tiverem relações sexuais num contexto responsável, ético, afetivo, etc. ainda têm problema?”

Os fundamentalistas (e os neo-ateus que acham que a interpretação fundamentalista é a interpretação bíblica correta) vão dizer que tem sim essa resposta lá, que é só ler no Levítico….

Mas como quem está acompanhando essa série já deve ter percebido, esse tipo de argumento é altamente desonesto. Primeiro, porque as mesmas pessoas afirmam estar lá varias coisas que não estão lá (como já mostrei que o texto de Levítico se refere exclusivamente ao sexo anal masculino, e que regras para qualquer coisa além disso são um desenvolvimento via tradição). Segundo, e talvez ainda mais importante, porque os autores bíblicos simplesmente NÃO pensaram nesse tipo de questão.

Vamos pegar uma analogia. O livro de Levítico (11:13–19) coloca morcegos e pássaros numa mesma categoria que podemos traduzir como ‘ave’, porque seu conceito análogo ao nosso de ‘ave’ era o de ‘animal vertebrado alado’. Ou seja, não existe diferença categorial entre aves e outros animais vertebrados alados ali, para todos os fins morcegos são como os pássaros. Então, a taxonomia biológica de Levítico agrupa todos os animais vertebrados alados em uma mesma categoria, sem considerar diferenças internas a esse grupo, algo que nós atualmente tratamos de uma maneira bem distinta.

De uma forma similar, o livro de Levítico coloca toda e qualquer interação homossexual envolvendo sexo anal numa mesma categoria (a de “mishk’vei ishah”) sem considerar diferenças contextuais que poderiam (ou não) fazer diferença para a avaliação (ritual? moral? prudencial? humanitária? médica? sociológica? etc.) desses casos. Mas hoje nós distinguimos essas categorias de forma bem mais precisa.

Para o mundo do Levítico, não havia diferença categorial entre o sexo anal masculino realizado num contexto de relacionamento amoroso ou fora dele, se realizado num contexto de igualdade ou num contexto de hierarquia social (escravo versus senhor do escravo; menino adolescente versus homem adulto). E o motivo para não se fazer essa diferença é que os casos mais convergentes aos valores bíblicos NEM SEQUER ERAM PENSADOS naquela época.

O motivo para isso é que a vivência homossexual era muito diferente no mundo antigo do que ela é no mundo moderno. Peguemos o caso romano como ilustração (que foi o contexto no qual viveram os sábios do Talmude que interpretaram a Torá e os escritores do Novo Testamento).

É bem conhecido pelos historiadores que a ‘liberalidade’ com atos homossexuais na cultura romana era feita num contexto bem problemático. Para uma apresentação clássica sobre isso, veja o Volume 1 da coleção “História da Vida Privada” (editada por George Duby e Philippe Ariés).

Em termos de pólo ativo e passivo do sexo anal, ocupar o pólo passivo era desonroso e degradante. Era o lugar ocupado pelo escravo ou por um menino na puberdade. Já no pólo ativo era ok para um homem livre adulto ocupar. O importante era ser quem ‘penetra’ (o dominante social, o homem livre cidadão), não quem é “penetrado” (o subordinado social, seja mulheres, meninos/meninas ou escravos). Ate os dias de hoje isso reflete na cultura popular brasileira, então imagine na antiguidade.

Mas aí você pode se perguntar “ok mas deviam existir casos homossexuais que fugiam a essa regra e se aproximavam mais dos parâmetros modernos”. Não vou negar que isso poderia existir, e na própria cultura judaica já mais adiante na Idade Média isso parecia ocorrer (como ainda irei comentar sobre a poesia homoerótica entre judeus sefarditas em terras islâmicas — e sim, ao contrário do que muita gente pensa, as culturas islâmicas pré-modernas eram mais tolerantes aos homossexuais que a cultura cristã europeia).

Entretanto, o mais importante aqui não é se existiam tais casos, mas sim se no período relevante da escrita bíblica e da tradição oral talmúdica tais casos eram pensados ou não. Se eles nem pensavam nessas hipóteses, justamente por não serem as predominantes ou ‘estereotípicas’ dentro do quadro cultural circundante (estrangeiro), então tanto faz se de fato ocorriam alguns casos desses ou não. Ficaram ‘abaixo do radar’ em relação ao estereótipo prevalente.

E ainda é de se pensar que os casos menos hierárquicos e agressivos naquele contexto cultural fossem justamente aqueles…. não envolvendo sexo anal (uma vez que o sexo anal envolve dor, que e o que ajuda a explicar porque o pólo passivo era visto como degradante e subordinado na cultura romana).

Portanto, a Bíblia NÃO fala de hipóteses que se tornaram mais marcantes socialmente apenas milênios depois de sua escrita. Quando esse tema é abordado, seja na Bíblia ou na tradição clássica que a interpretou (seja judaica ou cristã), eles não estavam fazendo referência aos casos que hoje nós consideramos tão mais relevantes para definir o fenômeno da homossexualidade como um todo.

De fato, eles sequer sabiam de fatos muito importantes sobre a formação da orientação sexual no desenvolvimento infantil, de forma automática e não sujeita a controle consciente. E foi apenas no século XIX que a auto-identificação como ‘homossexual’ enquanto um traço inerente da pessoa se tornou culturalmente disponível.

Tudo isso pode e DEVE ser usado para avaliar tais casos ‘novos’ (do ponto de vista da tradição bíblica e interpretativa clássica que não os conhecera). A avaliação final não necessariamente tem de ser negativa, como os fundamentalistas querem que nós pensemos. Isso está em nossas mãos, como a tradição judaica sempre enfatizou ao destacar o caráter jurisprudencial da Torá, que precisa ser desenvolvida por meio de raciocínio humano.

“Eu deixo isso inteiramente em suas mãos”. HQ Watchmen (1985).

Nos próximos posts meu objetivo será desenvolver mais essa questão das prováveis razões para o livro do Levítico dentro da Bíblia Hebraica ter estabelecido uma proibição ao sexo anal masculino (o que ajudará a entender porque esse preceito não é encontrado em nenhum outro livro da Bíblia Hebraica).

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A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.