[85] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 32- Judaísmo Conservador Derrubando Proibições Rabínicas
Como disse no post anterior, o judaísmo conservador/masorti se pauta na Responsa Combinada dos Rabinos Elliot N. Dorff, Daniel S. Nevins e Avram I. Reisner aprovada pelo Comitê de Leis e Padrões Judaicos em 2006. Essa Responsa é muito interessante porque um procedimento de Halacha (jurisprudência), mudando o entendimento da Halacha clássica no sentido de:
- Manter a restrição ao sexo anal entre 2 homens;
- Revogar todas as demais restrições existentes a práticas homoeróticas em termos de Halacha.
Assim, dentro da Halacha conservadora, são permitidas todas as práticas homoeróticas que a própria Torá não proíbe. Apenas permanece a proibição bíblica de Levítico 18:22, que versa exclusivamente sobre a prática de sexo anal entre homens.
Agora veremos sob quais fundamentos halachicos (jurisprudenciais judaicos) essa Responsa foi capaz de chegar nesse resultado.
A Responsa tem como título “Homosexuality, Human Dignity & Halakhah: a Combined Responsum for the Committee on Jewish Law and Standards” e ela é uma resposta formal à seguinte questão halachica: “Que diretriz a Halacha oferece para judeus que são homossexuais? Quais atividades íntimas são permitidas a eles e quais são proibidas? Como deve o judaísmo conservador se relacionar com casais gays ou lésbicos?”
Para responder essa questão, os Rabinos primeiro olham nos fundamentos diversos para diferentes proibições de práticas homoeróticas na Halacha clássica. O argumento feito por eles foi revisado por mim nos posts [56]-[57], então ali tem uma discussão mais completa sobre esse ponto. Mas resumidamente, a conclusão alcançada por eles foi a de que:
- Apenas a proibição ao sexo anal entre homens é uma proibição bíblica, como estabelecido em Levítico 18:22 c/c Levítico 20:18;
- A proibição às demais práticas homoeróticas entre homens é de natureza rabínica, seu intuito era criar cercas para a proibição bíblica acima;
- A proibição às práticas homoeróticas femininas é meramente rabínica, sem conexão com nenhuma proibição bíblica específica.
O fato de certa proibição ser meramente rabínica não significa que ela não tenha um peso significativo. O judaísmo rabínico é baseado nas decisões passadas dos rabinos em como melhor seguir a Lei Judaica. Entretanto, a Responsa faz uma importante contextualização aqui que relativiza essas decisões passadas: eles decidiram por um banimento abrangente da intimidade homoerótica porque não sabiam da natureza intrínseca da orientação sexual.
Isso significa que os rabinos do passado assumiam que essa proibição ampla poderia levar as pessoas com inclinações homossexuais para os contornos de um casamento heterossexual. Nunca os sábios sugeriram que o celibato fosse um resultado desejável em termos judaicos. Mas, nas últimas décadas, aprendemos que essa premissa sobre orientação sexual não é válida. Manter a Halacha clássica significa destinar uma classe significativa de judeus e judias para celibato perpétuo. Esse resultado é problemático do ponto de vista do próprio comando halachico para salvaguardar a dignidade humana.
Para entender isso, precisamos analisar os seguintes domínios: viabilidade, humilhação e dignidade humana.
- Viabilidade:
A inviabilidade do cumprimento de certa obrigação da Torá é base para que uma pessoa possa descumpri-la sem culpa para si. Os rabinos da Responsa citam o livro “Not in Heaven: The Nature and Function of Halakha” do Rabino Eliezer Berkowitz, no qual encontra-se um estudo histórico sobre a questão da viabilidade na Jurisprudência Judaica.
Pelo princípio rabínico “o que é possível é possível, o que é impossível é impossível” (היכא דאפשר — אפשר, היכא דלא אפשר — לא אפשר) que encontra seu fundamento bíblico em Deuteronômio 30:11–14, R. Berkowitz mostra que a Halacha só pode exigir algo que seja fisicamente possível E razoavelmente factível. Isto é, o impossível não é só o objetivamente impossível, mas também aquilo que não é razoavelmente factível.
Então, é preciso se perguntar se impor um celibato vitalício para judeus homossexuais é uma opção razoavelmente factível.
2. Dignidade Humana e Não-Humilhação:
Se a questão fosse meramente da viabilidade, poderíamos tratar esse tipo de situação caso-a-caso, isto é, permitindo exceções em casos individuais. Mas existe outro princípio em questão que exige uma reestruturação mais ampla da Lei Judaica neste ponto: a dignidade humana.
Normas que seja ignoram ou demandam a absoluta supressão da libido de homossexuais judeus criam um ambiente de humilhação a estes que não é compatível com o princípio da dignidade humana.
Note que este princípio da dignidade humana (כבוד הבריות) referido é um princípio da própria Halacha. O Talmude estabelece isso de forma clara e forte, em diversos tratados:
“Tão grande é a dignidade humana que ela supera um mandamento negativo da Torá” (BT Berakhot 19b; Shabbat 81b, 94b; Eruvin 41b; Megilah 3b; Bava Kama 79b; Menahot 37b, 38a; PT Nazir 56a)
Mas a Responsa é rápida em qualificar esta afirmação: o Talmude aqui se refere àquilo oriundo da autoridade rabínica como plenamente modificável com base na dignidade humana, mas esse princípio não é capaz de derrubar uma regra explicitamente bíblica por completo.
(Às vezes ocorre, tanto no Talmude babilônico como no Talmude de Jerusalém, de certas obrigações decorrentes de regras bíblicas também serem suspensas temporariamente com base na dignidade humana — vide Brakhot 19b e Yerushalmi Nazir 56a — , mas elas não levam à deleção permanente da regra em questão.)
Assim o argumento está montado: Se a proibição completa das práticas homoeróticas impõe uma indignidade aos judeus/judias homossexuais, e se certas proibições de práticas homoeróticas são rabínicas, então o princípio da dignidade humana pode derrubar e superar tais proibições rabínicas conforme a própria Halacha!
No restante da Responsa os rabinos revisam como esse princípio da dignidade humana foi usado no Talmude e em fontes de Halacha tanto medievais como modernas; e como esse príncipio está sendo ferido pelo entendimento rabínico da Halacha clássica, impondo uma indignidade, ou desgraça, para os judeus/judias homossexuais que por conta disso não podem estar plenamente integrados à vida comunitária judaica.
Desse modo, eles concluem que pelo príncipio da dignidade humana o Comitê de Leis e Padrões Judaicos deve pôr fim a essa humilhação intolerável no que diz respeito às proibições rabínicas.
Apenas a proibição do sexo anal entre homens deve ser mantida por ser bíblica, e, assim, não pode ser modificada via raciocínio legal apenas, mas demandaria um decreto rabínico para isso. Como o decreto rabínico só é usado quando a maioria da população o aceita, o fato dessa questão ainda ser controversa nas comunidades judaicas conservadoras impede sua adoção.
Assim, as proibições às demais práticas homoeróticas masculinas e a todas as práticas lésbicas são derrubadas com base na proteção da dignidade humana, um grande princípio da Halacha.
Agora uma nota minha: eu falei que um dos motivos para a restrição de Levítico ter sido desenvolvida em termos gerais era a da humilhação que se impunha ao passivo no meio cultural em que os sábios tiveram de aplicar as injuções levíticas num contexto já canônico. Curiosamente aqui vemos a razão da humilhação sendo usada novamente, mas dessa vez para derrubar as proibições rabínicas que cresceram em torno daquela regra do Levítico! Isso é um testemunho da vitalidade do raciocínio da Jurisprudência Judaica.
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