[89] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 36- Judaísmo Reformista e Reconstrucionista
O judaísmo reformista entende que a Halacha (Jurisprudência Judaica Tradicional) não é mais obrigatória, e que parte dela caiu em desuso. Neste ramo é dado um papel primordial à consciência individual e à comunidade local na interpretação das Mitzvot (em especial das rituais), com ênfase na ética e na justiça social.
A Halacha clássica não é exigível, mas pode ser seguida voluntariamente. Não existe uma Halacha reformista que substitua a clássica. As responsas de órgãos rabínicos reformistas como o CCAR (Conferência Central dos Rabinos Americanos) podem ser aceitas ou não pelas comunidades locais.
Aqui o judaísmo é interpretado com foco no monoteísmo ético e na preservação e renovação das tradições judaicas num contexto contemporâneo.
O impulso reformista advém da ideia de que o sistema da Halacha fornece parâmetros éticos que nos permitem avaliar mesmo a própria Halacha. Então, a ética da Torá ganha precedência sobre a Jurisprudência Clássica, sem precisar se engajar no procedimento formal baseado em precedentes ou decretos rabínicos para mudar a Halacha. Os ‘princípios’ são mais cruciais que as ‘regras’, como se constataria na própria tradição profética da Bíblia Hebraica.
O judaísmo reconstrucionista entende que a Halacha não é mais obrigatória, contudo, ela ainda deve ter um peso considerável na ‘reconstrução’ da civilização judaica na contemporaneidade. Isso vale inclusive para os seus aspectos rituais, não-éticos. E essa reconstrução da civilização judaica deve fazer uso extensivo também da Agadá (material bíblico e rabínico não-legal, isto é, narrativas, profecias, contos folclóricos, etc. interpretados principalmente pelo Midrash) e de métodos acadêmicos.
O judaísmo reconstrucionista visa uma reinterpretação criativa da Halacha e da Agadá como os dois pólos históricos de uma civilização religiosa que continua se desenvolvendo. Isso o assemelha aos ideais do judaísmo conservador/masorti, do qual ele se originou. Mas se afasta deste (e nisso se aproxima do judaísmo reformista) em dar maior peso à comunidade local e aos judeus individuais na interpretação das Mitzvot sob um enfoque ético, e assim levando a cabo maiores mudanças nesse entendimento.
Os dois movimentos judaicos acima serão tratados juntos, porque, neste ponto, suas posições são muito similares, sob os mesmos fundamentos. Aqui aceita-se a homossexualidade de forma plena (mesmo a prática do sexo anal entre homens) e o casamento homossexual com base em considerações de ética judaica e à luz de fatos científicos que não foram conhecidos pela tradição judaica anterior.
Além disso, nenhum desses movimentos esforça-se por mudar a Halacha clássica (enquanto no âmbito reconstrucionista algumas vozes defendam uma espécie de reconstrução da Halacha). Não existe uma Halacha reformista nem uma Halacha reconstrucionista. A Halacha estudada nesses movimentos continua a ser a clássica, mas entendida em termos não obrigatórios, como um guia de horizontes possíveis para a vida judaica. Isso porque, como já disse, a ética judaica tem precedência sobre a jurisprudência judaica.
Deve-se destacar, entretanto, que esses movimentos também tendem a enfatizar o estudo da tradição talmúdica diretamente, com sua pluralidade de posições halachicas, ao invés de deferir para as codificações da Halacha clássica, que tentam uniformizar as decisões. Com isso seria possível mais adequadamente respeitar a própria Tradição Judaica, que sempre teria sido caracterizada por um impulso progressista (aberto a mudanças e pluralista).
Ambos os movimentos foram pioneiros na questão LGBT. Já em 1977, o CCAR (a maior associação rabínica do judaísmo reformista nos estados Unidos) adotou uma resolução em apoio da descriminalização de atos homossexuais entre adultos e o fim da discriminação. A ordenação de rabinos homossexuais foi adotado primeiro pelo judaísmo reconstrucionista, com a primeira rabina abertamente lésbica Deborah Brin (em 1985), no que foi seguido pelo movimento reformista (em 1990).
Na década de 90 ambos os movimentos vieram a reconhecer o casamento homossexual, sendo voluntária a decisão de um rabino por oficiar tais casamentos ou não (reconstrucionista em 1993 e reformista em 1996 para o caso civil e 1998/2000 para o caso religioso). O movimento reformista permitiu que rabinos realizem a cerimônia de kiddushin para casais homossexuais (em 2014; vide Responsa 5774.4 do CCAR). Não consegui identificar se o movimento reconstrucionista permite o uso do kiddushin (enquanto veja aqui a opinião de um rabino reconstrucionista — em coautoria com uma rabina conservadora — defendendo seu uso, em texto de 2019).
O principal argumento em favor da posição reformista/reconstrucionista sobre a homossexualidade reside na contextualização da proibição existente no livro de Levítico e como recebida na tradição judaica oral.
Como vimos nos posts [63]-[64]-[68]-[71], a principal razão por trás da proibição bíblica ao sexo anal entre homens tem relação com a prostituição ritual/idolatria e com o contexto hierárquico no qual aquele ato era praticado na antiguidade clássica. Desse modo, o que a Bíblia de fato proíbe não seria o sexo anal entre homens em quaisquer circunstâncias possíveis e imagináveis, mas considerado o contexto de sua época.
Sejam os escritores bíblicos ou os sábios talmúdicos, nenhum deles pesou todos os casos possíveis, em especial nem passava na cabeça deles os casos modernos. Assim, aplicar tal como escrito essa regra para casos desiguais seria injusto.
Além disso, a maioria dos escritores bíblicos não pressupunha tal proibição (como vimos no post [65]-[66]) e os sábios do Talmude foram muito lacônicos em relação a isso, havendo pouca discussão envolvendo poucos sábios (como vimos no post [88]). Portanto:
- a possibilidade de uma vida judaica sem tal proibição existe na própria história bíblica;
- a possibilidade de uma vida judaica na qual tal proibição não fica estabelecida de forma fechada e exaustiva, mas sim aberta a possíveis mudanças e novos julgamentos está dada pela própria história da tradição judaica oral.
Outro ponto é que a jurisprudência judaica (Halacha) como extraída da Torá pode se chocar com a ética, como vimos no post [87]. Reformistas e reconstrucionistas (tal como conservadores) não adotam a Teologia da Akedá, e assim, não sacrificam a ética perante aparentes obrigações legais da Torá em desacordo à ética. Assim, se a ética demanda que a prática homossexual, mesmo a do sexo anal entre homens, sob tais e tais circunstâncias, seja aceita, nosso entendimento da Torá deve mudar — porque o entendimento anterior estaria inadequado.
Note: isso não é mudar a Lei com base em conveniência pessoal, mas sim levar muito a serio a questão ética posta pela experiência homossexual tal como a conhecemos hoje.
Referida base ética pode ser entendida de duas maneiras, complementares: como ética humana universal (interreligiosa e/ou secular); e como ética judaica, pautada em valores éticos inscritos na própria Torá e no restante da Bíblia Hebraica e da Tradição Judaica.
Ambas convergiriam para a conclusão de que a proibição de Levítico (e as proibições rabínicas acessórias) não deve ser entendida de modo absoluto — sob pena de faltar com a ética e a justiça que a própria Torá demanda.
Isso leva em conta descobertas factuais empíricas, como aquelas analisadas na Responsa do movimento conservador discutida no post [85]. A orientação sexual é intrínseca ao indivíduo, estabelecida muito cedo no desenvolvimento e sem controle voluntário. As consequências de negar a expressão dessa sexualidade são muito negativas para o bem-estar e dignidade das pessoas assim reprimidas.
Dessa maneira, os movimentos reformistas e reconstrucionistas são os mais inclusivos na questão LGBT entre os movimentos judaicos askhenazitas contemporâneos. Ambos são seguidos de perto pelo movimento conservador/masorti e por parte crescente da Ortodoxia Moderna.
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