[9] Por que uma religião da Lei?

A Estrela da Redenção
3 min readJun 24, 2020

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Como vimos com apenas alguns poucos exemplos (ainda veremos mais), a graça, o amor, a bondade, etc. abundam na Bíblia Hebraica. Nem sempre de forma óbvia, mas está lá. Então por que o judaísmo enfatiza tanto a Lei?

Uma explicação equivocada para isso é baseada numa leitura cristianizada* da Bíblia Hebraica e por tabela da religião judaica. Deus daria a Lei para que o homem fosse salvo por meio dela. Mas é impossível cumprir tudo, então a real função da Lei era mostrar que merecemos um duro castigo e nossa salvação tem de vir de alguma alternativa à Lei.

No cristianismo, isso abre caminho para uma nova revelação, na qual somos salvos não pela Lei, mas sim pelo sacrifício de Jesus na cruz. Infelizmente, continua esse argumento, os judeus rejeitaram Jesus porque não entenderam ainda que a Lei não salva (isto é, incorrem no erro do legalismo).

O problema é que isso confunde o objetivo das duas religiões. O objetivo do cristianismo (ou da maioria dele) de fato é a salvação individual para um pós-morte mais favorável no julgamento final. Mas o objetivo do judaísmo não é a salvação individual, e sim a construção de um certo tipo de COMUNIDADE NESTE MUNDO.

O evento fundador no cristianismo é um assassinato injusto que serviu como um sacrifício humano que concede perdão às pessoas pelo seu pecado e as salva da condenação eterna em que elas nascem. Já no judaísmo o evento fundador é a libertação de um povo mais fraco da escravidão por um mais poderoso e a entrega de uma Lei que permitirá esse povo viver de forma boa e justa em uma terra santa. Note que essa é a história da origem de um povo independente mais do que de uma religião apenas.

Portanto, um dos objetivos centrais da Lei é organizar a vida em comunidade para que ela possa ser melhor desfrutada em termos de benefícios terrenos. Outro objetivo é uma santificação do cotidiano, uma vez que o povo ao qual ela se destina teria por herança uma terra sagrada e seria um povo ‘sacerdotal’ entre os povos do planeta.

A diáspora judaica para fora da palestina, quando o Império Romano expulsou o povo judeu de lá, também ressaltou esse aspecto. Sendo por quase 2 milênios um povo sem uma terra própria, espalhado entre outras nações e muitas vezes perseguido, foi por se agarrar à Lei que os judeus conseguiram se preservar como uma civilização própria. A Lei permitiu às comunidades judaicas um auto-governo não-estatal estável até inicio do século XIX. (No século XIX ocorreu a emancipação judaica, onde os judeus se tornaram cidadãos das nações onde residiam.)

“Napoléon le grand rétablit le culte des Israélites, le 30 Mai 1806” [Napoleão o Grande reabilita o culto dos Israelitas, no 30 de maio de 1806], Anônimo, 1806, retratando a emancipação judaica promovida por Napoleão Bonaparte.

*Aqui no blog, a menos que dito de outra forma, quando menciono o cristianismo de maneira geral estarei priorizando a leitura feita pelo ramo ocidental do cristianismo de maneira genérica (catolicismo/protestantismo), mesmo ciente de que existem diferenças tanto com o ramo oriental como também que há certos ramos ocidentais que também possuem diferenças importantes (ex. os adventistas do sétimo dia). O motivo para isso é que essa versão mais geral ocidental do cristianismo é a que mais influenciou o nosso país.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.

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