[111] Por que leituras grosseiramente errôneas da Torá são tão comuns?

A Estrela da Redenção
5 min readMay 5, 2021

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No post anterior, expliquei como se devia ler o texto da Torá escrita no seu sentido estrito, isto é, os 5 primeiros livros da Bíblia, no qual encontramos o núcleo central da narrativa e prática judaicas. Nesse sentido a Torá funciona como a Constituição tradicional da civilização judaica.

Agora o leitor estará em condições de entender porque as interpretações mais comuns de textos da Torá que vemos por aí, geralmente veiculadas por fundamentalistas cristãos ou neo-ateus, são tão erradas!

Um ponto em comum entre essas diversas más interpretações, comum tanto aos fundamentalistas cristãos quanto aos neo-ateus (fundamentalistas ateus), diz respeito a ler o texto da Torá como se fosse um texto auto-contido e fechado.

Isso assume que o sentido literal do texto é uma função simples do que está escrito. Daí essas interpretações geralmente se apresentarem como “interpretações literais”. Por exemplo, é comum fundamentalistas cristãos apresentarem versos da Torá para tentar provar certa doutrina, ou que neo-ateus aleguem que tal texto da Torá é um absurdo, apelando para um sentido literal “óbvio” que o texto passaria.

Um problema é que tais interpretações “literais” nem sequer são literais. O leitor assíduo do blog deve recordar casos extremos disso que vimos na Série “Homossexualidade e Bíblia Hebraica”, onde se assume uma série de premissas questionáveis para chegar num suposto “sentido literal óbvio” que tem nada de óbvio nem de literal.

Por isso o mais correto é chamar esse tipo de leitura de “literalista”: a leitura literalista pretende elucidar e seguir o sentido literal do texto, mas de modo geral falha nesse propósito. É que tal leitura força uma “exaustividade” e “fechamento” dos textos que não é adequada para capturar o sentido literal da Bíblia Hebraica (e quanto menos outros horizontes de sentido mais intertextuais nela!).

Leia o seguinte versículo, dizendo respeito ao preceito de um sacerdote diariamente retirar uma pazada de cinzas do Altar no Templo, que comentei no post [109]:

“E o sacerdote vestirá a sua veste de linho, e vestirá as calças de linho, sobre a sua carne, e levantará a cinza, quando o fogo houver consumido o holocausto sobre o altar, e a porá junto ao altar.” (Levítico 6:10)

Um leitor aloprado rapidamente chegaria na conclusão de que literalmente está escrito que o sacerdote deve vestir duas roupas, a veste de linho e as calças de linho, e concluiria que de acordo com esse texto nada mais seria vestido além disso. Só que em outros textos da Torá (especialmente Êxodo 28) fica claro que o sacerdote usava quatro vestimentas, incluindo as duas anteriores, mais um turbante e um cinturão. Então, esse leitor “literal” concluiria que “obviamente” o texto acima traz uma exceção à regra exigindo apenas duas das quatro vestimentas.

Note: o problema não está em reconhecer que nesse texto de Levítico se mencionam apenas duas vestimentas, e não quatro. Isso está literalmente aí. Mas o que não está literalmente aí é que o sacerdote deveria vestir APENAS essas duas vestimentas. Essa parte é uma inferência que um leitor apressado rapidamente colocaria como óbvia e literal quando não é necessariamente o caso. Se o sacerdote nesse caso deveria vestir ou vestia apenas duas vestimentas é uma questão a ser pensada e debatida (como o foi há mais de 1.800 anos por sábios talmúdicos em Yoma 23b).

O mais plausível no caso desse texto é que, apesar de estar escrito apenas duas vestimentas, o texto em questão pressupõe que o sacerdote use quatro vestimentas, e que isso sim seja a leitura mais óbvia do texto. Vamos colocar a cabeça para raciocinar….

O leitor literalista acha que o texto afirma que só duas vestimentas precisam ser usadas. Por que ele pensa isso? Porque ele pressupõe que o texto bíblico pretende colocar tudo que precisa por escrito. E essa pressuposição NÃO se aplica ao texto bíblico-hebraico.

A Torá (e mesmo a Bíblia Hebraica como um todo) pressupõe um contexto de discussão oral prévio/concomitante a esses textos e bem conhecido por seus leitores. Por isso é comum o uso de uma escrita “mnemônica”, colocando DE PROPÓSITO informação incompleta mas facilmente completável de memória por um leitor pertencente ao ambiente cultural e idiomático desses textos.

Então, quando esse texto coloca “túnica e calça de linho usará”, ele está afirmando “túnica e calça de linho [e turbante e cinto] usará”, mas NÃO PRECISOU ESCREVER ISSO TUDO POR EXTENSO. A forma de escrita é mnemônica: cita duas das vestimentas de modo a que o leitor lembre das demais por ele mesmo, supondo que, ao se mencionar duas dessas vestes, o leitor se recordará do traje completo dos sacerdotes comuns.

E note: quando esse texto foi escrito, EXISTIAM REALMENTE SACERDOTES VESTINDO ESSAS ROUPAS NO TEMPLO SAGRADO. Então, para um leitor nesse ambiente, não restaria nenhuma dúvida do que o texto quer dizer. O leitor antigo era familiarizado com as roupas do sacerdote. O que o texto diz poderia ser checado por si mesmo numa visita ao Templo se necessário fosse.

É só por uma distância muito grande do texto original (agravada pela ausência de contato com os comentários judaicos intermediários entre nós e o escritor do texto original) que alguém chegaria na conclusão de que o único sentido literal e óbvio daquele versículo fosse o de exigir apenas duas roupas para o sacerdote executar a remoção diária das cinzas do Altar.

“The Disintegration of the Persistence of Memory” [A Desintegração da Persistência da Memória], Salvador Dalí, 1952–1954.

Daí portanto vem a verdade difícil de engolir por esses fundamentalistas cristãos e neo-ateus: a Torá escrita não é adequadamente lida sozinha, ao contrário, a própria Torá escrita requer que seja lida junto com as discussões da Torá oral (a tradição judaica intermédia entre nós e o contexto original do texto).

O texto da Torá escrita é em grande medida um mnemônico remetendo a uma Torá oral. Ou seja: um texto escrito propositalmente de forma incompleta/não-exaustiva pois remete a um contexto oral para o qual serve de “dispositivo de lembrança/memorização”.

Lendo uma parte (o texto escrito) lembra-se do todo (o aprendizado oral).

Portanto, ignorada a real natureza do texto em questão, a leitura da Torá feita por esses apologetas cristãos e ateus acaba sendo totalmente errada. Tal leitura “literalista” precisa acabar.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.

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