[115] A Camisinha e o Fruto Proibido
No último post abordei a razão para haver um fruto proibido no meio do Jardim do Éden. Nesse post pretendo trazer uma reflexão sobre algo que essa narrativa do fruto proibido tem a nos ensinar sobre o comportamento humano.
Como falei no post anterior, a Adão e Eva foi dado um preceito bem fácil de cumprir: não comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal.
Esse preceito alimentar de fato era extremamente fácil: bastava não comer a fruta de uma única árvore, no meio de um jardim com uma variedade enorme de frutas e vegetais de altíssima qualidade em abundância e livremente disponíveis para comer.
A consequência de simplesmente se abster de fazer isso era enorme: nunca morrer (ou ao menos ter vidas contadas numa escala de vários milênios ou dezenas de milênios) e viver bem num Jardim plantado pelo próprio Deus com a melhor dieta vegana disponível!
Ainda assim, o casal primordial comeu do fruto proibido. O preceito foi descumprido mesmo sendo fácil.
Espera um pouco. Eu disse na frase anterior que o preceito foi descumprido APESAR de fácil. Mas será que o mais correto não seria dizer que o preceito foi descumprido PORQUE era fácil demais?
Um paralelo curioso pode ser traçado com a ética sexual contemporânea mais dominante nas sociedades ocidentais. Referida ética sexual é baseada em dar um amplo espaço de liberdade individual, basicamente exigindo apenas duas regras: a do consentimento e a da prevenção de DST (principalmente a do HIV/AIDS) pelo uso de camisinha.
Isso significa que, se estivermos falando de relações sexuais consentidas, muitas pessoas da nossa cultura contemporânea têm apenas UMA regra em mente: usar camisinha.
Ainda assim, uma quantidade enorme de jovens NÃO usa camisinha. Isso mesmo quando transam com pessoas desconhecidas ou com as quais não tem um relacionamento exclusivo. A consequência social disso obviamente é bem negativa em termos de saúde pública.
Agora veja: trata-se de um caso bem similar ao do fruto proibido do Éden. Aos jovens de hoje é dado um único preceito a cumprir na esfera de relações sexuais consentidas: use camisinha. E ainda assim falham em cumpri-lo. De fato, não podemos dizer que o cenário descrito nos primeiros capítulos do Gênesis seria irrealista….
Em ambos os casos vemos pessoas não resistindo a serem levadas pelo seu desejo e pelos estímulos sensoriais. No caso de Adão e Eva, “viu que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento” (Gênesis 3:6). No caso da cultura atual, o impulso sexual.
Em ambos os casos entramos na esfera de certas necessidades elementares do ser humano: alimentação e sexo. Contudo, em nenhum desses casos estamos falando de necessidades, e sim de desejo: Adão e Eva não comeram do fruto proibido porque estavam com fome, e de nenhuma maneira necessitavam comer daquele fruto.
Da mesma maneira, na cultura atual os jovens não fazem sexo sem camisinha porque seja impossível fazer com, mas porque fazer com camisinha coloca certos empecilhos ao gozo do momento (por exemplo, porque é necessário interromper um pouco para colocar a camisinha, ou porque a camisinha diminuiria a sensibilidade da penetração). Se as pessoas já estão transando, é claro que elas podem fazer a penetração com camisinha (salvo circunstâncias excepcionais), então não é necessário para transar fazê-lo sem camisinha.
Assim, fazer sexo pode ser uma necessidade humana, mas fazer sexo sem camisinha não é (exceto se o objetivo for reprodução biológica), da mesma forma como se alimentar é uma necessidade humana, mas comer do fruto proibido no Éden não era.
A lição que extraio disso é que um código de comportamento, uma ética, pode falhar por dois motivos: por ser rigorosa demais e por ser fácil demais.
O caso do fracasso de uma ética rigorosa demais é um fato bem conhecido em nossa cultura. Por exemplo, a falha de uma ética sexual baseada em fazer sexo apenas depois do casamento em condições contemporâneas é bem patente, dado que a maioria das pessoas não mais têm condições nem disposição de casar na flor da idade. Então, tal regra é rigorosa demais nas circunstâncias atuais, ao obrigar pessoas no pico de seus hormônios a não transarem e atrasarem sua primeira transa até estarem muito mais velhas.
Contudo, nossa cultura atual negligencia o outro lado dessa equação: uma ética fácil demais, sem quase nenhuma regra, também é uma receita em direção ao fracasso.
Note: um regramento muito difícil leva à falha sistemática porque ele é difícil de cumprir. É um caso bem óbvio. Mas porque um regramento muito fácil também levaria à falha sistemática?
A razão me parece ser a de que, quando as regras são fáceis demais, não temos muitas oportunidades de exercitar o auto-controle de nossos impulsos, desejos, vontades etc. Tendo poucos “preceitos” a cumprir, nossos desejos ficam muito mais no controle do nosso comportamento do que deveriam; assim, a pessoa é muito mais controlada pelos próprios desejos na maior parte do tempo. Então, na hora de cumprir aqueles poucos preceitos, a força de vontade e o auto-controle tendem a ser mais fracos do que poderiam ser. Daí a taxa de falha em cumpri-los ser maior do que seria com um regramento um tanto mais difícil (mas que não fosse muito difícil).
Outra razão também é que, quando são poucas as regras, muito provavelmente não temos à disposição “regras preventivas”. Isso é aquilo que os sábios do Talmude se referem ao dizer “façam uma cerca em torno da Torá” (Pirkei Avot 1).
O sistema rabínico de Jurisprudência Judaica encontrado no Talmude se baseia não apenas nas Mitzvot (preceitos) da Torá, mas no desenvolvimento de regras secundárias cujo intuito é prevenir a violação das Mitzvot.
Ou seja, se queremos cumprir o preceito X, e queremos de fato aumentar a probabilidade de cumpri-lo enquanto reduzimos a probabilidade de descumpri-lo, desenvolvemos uma regra Y que impede de chegarmos em condições que nos levem ao descumprimento do preceito (ou, alternativamente, que criem condições que nos levem ao cumprimento do preceito em questão).
Por exemplo, se uma pessoa tem como regra não comer doces em excesso, uma regra preventiva que ajuda no cumprimento desse objetivo é o de nem sequer ter doces em casa. A regra preventiva elimina a tentação, de modo que a regra realmente importante seja cumprida com mais facilidade. Ou seja, se a única regra fosse não comer doces em excesso, o cumprimento desse preceito na verdade era MAIS DIFÍCIL do que agora tendo duas regras, a de não comer doces em excesso e a de não ter doces em casa. Assim, ter DUAS regras ao invés de UMA torna o real cumprimento desse regramento MAIS FÁCIL, mesmo que haja mais regras e seja mais rigoroso do que antes!
No caso do Éden, chegamos a ver na discussão entre a serpente e Eva um exemplo de regra preventiva, uma vez que Eva fala “disse Deus: Não comereis dele, nem nele tocareis para que não morrais” (Gênesis 3:3), enquanto Deus na verdade apenas tinha dito para não comer, não sendo proibido tocar (Gênesis 2:17). Contudo, neste caso em específico, parece que Eva não entendera a diferença entre o preceito como tal e a regra preventiva meramente acessória, de modo que isso acabou operando em seu desfavor. Alguns comentaristas judaicos (Rashi; Hizkuni) pensam que, após Eva dizer isso, a serpente a empurrou e esta acabou tocando no fruto proibido; ao ver que não morrera, isso a levou a pensar que também não morreria se comesse (note que isso é similar ao caso da pessoa que transa camisinha sem pegar DST e com isso se sente incentivada a não usar a camisinha novamente).
Assim, um regramento muito fácil acaba fracassando em ser cumprido por dois motivos básicos: 1) falta de exercício do auto-controle, disciplina etc. com concomitante poder demais para desejos, “vontades”, impulsos, etc. controlando a pessoa; 2) falta de regras preventivas que colaborem ao cumprimento das regras, por gerar as condições mais propícias a esse cumprimento e/ou evitar as condições que levem ao descumprimento.
Foi por isso que o preceito único (“do fruto dessa árvore não comerás”) do Éden e a ética sexual minimalista (“use camisinha”) da nossa cultura contemporânea fracassaram/fracassam em ser cumpridos mesmo sendo muito fáceis.
Observação: pelas mesmas considerações comentadas aqui sobre regramentos fáceis e difíceis e a utilidade de um meio-termo, também podemos entender porque programas de educação sexual baseada em sexo seguro (com informações sobre uso de camisinha, mas que também encorajam menos parceiros sexuais e relacionamentos mais estáveis) são muito mais bem-sucedidos para adolescentes do que programas de educação sexual focados em abstinência até o casamento, como mostram diversas pesquisas na área, inclusive mais bem-sucedidos em postergar a idade da primeira relação sexual dos jovens! Esse outro caso fica de exercício para o leitor.
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