[114] Por que tinha um fruto proibido no Jardim do Éden?
No post anterior expliquei porque havia uma serpente falante no Jardim do Éden. Agora irei explicar porque havia um fruto proibido lá.
Antes de explicar isso, você precisa descartar a seguinte concepção da sua mente: a de que comer o fruto proibido seria “o pecado original”, por meio do qual toda a humanidade virou pecadora e foi condenada a um inferno eterno (ou condenação eterna) da qual precisaria ser salva. Tal concepção NÃO é a do livro do Gênesis, nem a da Bíblia Hebraica (vulgarmente chamada de “Velho” Testamento).
Fazendo uma leitura “natural” do texto, o que estava em jogo ali era a morte natural. “No dia em que dela comerdes, morrerás”, nas palavras de Deus. Sendo que o próprio Deus não cumpriu isso ao pé da letra: Ele afirma “no dia que comeres vai morrer”, mas segundo o relato bíblico Adão ainda vive 960 anos depois desse acontecimento!
O que mostra o atributo da Misericórdia Divina já nas primeiras páginas, retardando a morte natural dos envolvidos por séculos. Esse padrão irá continuar em toda a Bíblia Hebraica, onde Ele na verdade DEMORA a trazer punições, ‘é tardio em irar-se’. E esse demorar pode ser SÉCULOS quando se trata de povos (os quais, na Bíblia Hebraica, são os objetos primários de juízo). Ou seja, o contrário da caricatura que fazem por aí de um Deus punitivo e rígido!
Entrando então na explicação do porquê de haver um fruto proibido na história do Jardim do Éden, o correto aqui não é se focar na ideia cristã mais comum de “pecado”, mas sim na ideia judaica de “mitsvá”. (Também existe um conceito de “pecado” no judaísmo, contudo, é conceito subordinado ao de “mistvá”)
Como já expliquei em posts anteriores do blog, uma “mistvá” é um preceito cujo cumprimento liga o ser humano à Divindade. Na concepção judaica, as mitzvot são dadas no contexto de uma aliança entre Deus e os seres humanos (para todos ou para um subconjunto deles).
E por que uma aliança? Porque na concepção judaica Deus não se envolve com o mundo num sentido abstrato, e sim pessoal. Esse ‘pessoal’ sendo entendido a partir de comunidades históricas. A premissa, seja para os judeus ou para toda a humanidade, é sempre a mesma:
1- Deus oferece primeiro, por sua graça, um benefício MATERIAL a uma comunidade, geralmente envolvendo uma terra para se estabelecer como povo e viver de forma livre da opressão;
2- Em contrapartida, depois disso, a comunidade precisa seguir as Mitzvot, em especial pelo estabelecimento de uma comunidade humana justa, que é a sua parte do acordo.
O MESMO se aplica a Adão e Eva no jardim do Éden. Deus deu uma terra ao casal original, e em contrapartida eles deveriam seguir uma Mistvá, a de não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal. Mas eles desobedeceram a aliança, e, sendo tão ‘íntimos’ com Deus (pois este andava pelo jardim com eles), a consequência da expulsão daquela terra era drástica (a mortalidade, o trabalho duro etc. fora do Éden).
Isso permite ao profeta Oséias comparar os israelitas com Adão, a única vez que a Bíblia Hebraica fala de Adão fora da história em Gênesis:
“Mas eles, como Adão, transgrediram a aliança na terra que lhes concedi, agindo traiçoeiramente contra mim.” (Oséias 6:7)
Mas talvez o leitor ainda esteja intrigado: não é um castigo muito duro para um ato tão pequeno (comer uma fruta)?
O problema é que você está olhando com base na perspectiva de “pecado”, não na de “mitsvá”.
O que você deveria se perguntar é como uma recompensa TÃO GRANDE, a de nunca morrer e viver bem num Jardim plantado pelo próprio Deus com a melhor dieta vegana disponível, poderia vir de um ato tão pequeno, simplesmente não comer UMA ÚNICA fruta!
Na Torá, é determinado ao povo judeu uma série de preceitos alimentares e agrícolas, sendo os primeiros aplicados aos judeus residindo em qualquer lugar do mundo e os últimos aplicados apenas na terra prometida (eretz Israel). Essas mitzvot são entendidas como obrigatórias apenas para o povo judeu, mas os não-judeus podem cumpri-las voluntariamente, obtendo “recompensa” por isso.
Alguns desses preceitos alimentares são coisas bem fáceis de cumprir, por exemplo, basta não comer porco que o praticante dessa mitsvá se conecta ao próprio Eterno. Deus MULTIPLICOU os preceitos não para condenar o povo de Israel, ma sim para amplificar os BENEFÍCIOS dessa observância.
Num sentido psicológico mesmo, isso funciona: por cumprir uma coisa simples, a pessoa obtém um saldo de satisfação psicológica, o que é bom para ter uma linha básica de auto-estima. Sem tais regras fáceis, a pessoa só obteria a mesma satisfação de ações muito mais complicadas que não necessariamente conseguiria fazer. Muitas pessoas excessivamente rigorosas consigo mesmo o são porque, implicitamente, tem um critério excessivamente rigoroso para o que teriam de fazer para sentir-se minimamente satisfeitas consigo mesmas.
Esse tipo de regra alimentar ou agrícola fácil é onde eu categorizo a mistvá de ‘não comer do fruto proibido’ na narrativa do Gênesis. Era uma proibição fácil de cumprir, pois bastava não comer. Continuamente essa obrigação era satisfeita enquanto não se comesse daquele fruto. Literalmente a PRIMEIRA ORDEM DIVINA nas Escrituras recai na categoria de regra fácil, eu diria até mesmo ‘facilíssima’ de cumprir, dado tudo o mais disponível no Éden para se alimentar.
Outra coisa interessante é que, narrativamente, o fato daquele fruto ter sido proibido naquele momento não significava que ele seria proibido para sempre. Talvez o acesso a ele fosse liberado mais adiante, no tempo certo, quando Adão e Eva estivessem mais amadurecidos. Isso faria existir um paralelo entre essa mistvá dada ao casal com a mitsvá agrícola de não comer do fruto de uma árvore plantada na terra de Israel que surgisse antes de 3 anos que aquela árvore fosse plantada.
“E, quando tiverdes entrado na terra, e plantardes toda a árvore de comer, ser-vos-á incircunciso o seu fruto; três anos vos será incircunciso; dele não se comerá. Porém no quarto ano todo o seu fruto será santo para dar louvores ao Senhor. E no quinto ano comereis o seu fruto, para que vos faça aumentar a sua produção. Eu sou o Senhor vosso Deus.” (Levítico 19:23–25)
Por essa mitsvá, também haviam frutos proibidos em eretz Israel: o fruto de uma árvore plantada que surgisse nos primeiros 3 anos de seu plantio não poderia ser comido por ninguém, e era um fruto para sempre proibido, mesmo que você o conseguisse preservar até depois dos 3 anos (veja Rashi para esse verso e Likutei Sichot, vol. 22, p. 103 e vol. 22, p. 199–201, adaptado em Chumash-Gutnick Levítico, p. 166–168). No 4º ano, somente poderia ser comido pelos Sacerdotes no Templo. Do 5º ano em diante esse fruto estaria liberado para os israelitas (não-sacerdotes).
A meu ver, esse preceito da Lei Judaica é o mais parecido com o de “não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal” em toda a Torá, e lança uma possibilidade de leitura bem interessante. Afinal, como os comentaristas judaicos clássicos abordam sobre esse trecho, abdicar de comer o fruto nos primeiros 3 anos faz sentido, afinal, nesse tempo os frutos não estariam ainda bem formados ou sequer são formados (Ibn Ezra; Ramban/Nachmânides). Seria então necessário um tempo de maturação para a árvore produzir o fruto no seu tempo certo e bem desenvolvido. Então outra forma de ler a narrativa do Éden poderia ser a de que Adão e Eva comeram muito precocemente do fruto, não estando eles mesmos amadurecidos o suficiente para tirar proveito disso.
Contudo, nem todas as regras alimentares e agrícolas da Torá são fáceis. A Torá ordena aos agricultores em eretz Israel que deixem parte do produto de seus campos de grãos para os necessitados, em três categorias:
- peá: deixar grãos no canto do campo de cultivo para os necessitados;
- leket: caso uma ou duas espigas de grão caíam no solo durante a colheita, as espigas em questão pertencem aos necessitados;
- shichechá: feixes de espigas que forem esquecidos quando da colheita pertencem aos necessitados.
O mesmo se aplica para um campo de uvas ou de oliveiras. Mas caso o campo fosse de vegetais, a obrigação seria diferente: é necessário retirar o masser antes de comer daquela colheita, sendo o masser igual a 10% da colheita inteira que seria destinada aos necessitados ou aos levitas (os levitas não possuíam terras próprias para cultivo, por isso eram sustentados dessa forma quando existia o Templo).
Aqui os agricultores proprietários de terra precisavam devolver parte da sua colheita para os necessitados, como uma questão de justiça social. Isso é mais difícil de cumprir, uma vez que afeta diretamente o auto-interesse e egoísmo pessoais em reter para si todo o produto de uma colheita. Mas se seguida essa mistvá isso espalhava a felicidade de uma nova colheita entre todos os israelitas e estrangeiros residentes em eretz Israel, não ficando somente para aqueles que produziam a colheita ou tinham condição financeira para “fazer a feira”.
Na punição dada a Adão após comer do fruto proibido, se remete à horticultura ou agricultura (ou mesmo coleta) em condições mais desfavoráveis do que havia no Jardim do Éden:
“E a Adão disse: Porquanto deste ouvidos à voz de tua mulher, e comeste da árvore de que te ordenei, dizendo: Não comerás dela, maldita é a terra por causa de ti; com dor comerás dela todos os dias da tua vida.
Espinhos, e cardos também, te produzirá; e comerás a erva do campo.
No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado; porquanto és pó e em pó te tornarás.” (Gênesis 3:17–19)
Lendo intertextualmente fica claro que a expulsão do Éden, por não terem Adão e Eva se guardado de comer o fruto proibido quando tinham acesso mais do que farto a muitos outros frutos, abriu caminho para a possibilidade da JUSTIÇA SOCIAL e solidariedade no que diz à divisão dos frutos da terra inteira e mesmo no sentido de cooperação (e adaptabilidade humana) para produzir ou coletar tais frutos. Da perspectiva de cada pessoa individual, isso envolve abster-se de tomar todo o fruto da terra para si mesmo, uma lição que Adão e Eva não haviam compreendido ao quererem ter todos os frutos para si mesmos.
Então, aquilo que seria punição pode ser transformado numa possibilidade de cumprir um número muito maior de mitzvot e de fazer o bem numa escala não possível no próprio Éden.
Essa era o sonho israelita como o vemos na Torá: ir para uma terra prometida, que emana leite e mel, um novo Éden, no qual cultivaremos a terra e dividiremos seu produto de forma justa, sem deixar nenhum israelita ou estrangeiro residente para trás na luta pela vida.
Ou como belamente dito pelos Profetas:
“E trarei do cativeiro meu povo Israel, e eles reedificarão as cidades assoladas, e nelas habitarão, e plantarão vinhas, e beberão o seu vinho, e farão pomares, e lhes comerão o fruto. E plantá-los-ei na sua terra, e não serão mais arrancados da sua terra que lhes dei, diz o Senhor teu Deus.” (Amós 9:14,15)
“Naquele dia, diz o Senhor dos Exércitos, cada um de vós convidará o seu próximo para debaixo da videira e para debaixo da figueira.” (Zacarias 3:10)
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