[113] Por que tinha uma serpente falante no Jardim do Éden?
Coloque o seguinte princípio na sua cabeça para não esquecer mais: muito do que vemos na Bíblia Hebraica pode ser melhor entendido num contexto de resistência israelita/judaica contra opressão sociopolítica, de cunho hierárquico e/ou imperial, no entorno do Antigo Israel.
Eu já comentei sobre isso algumas vezes no blog, por exemplo, em referências aos Salmos e aos Profetas. Mas isso é tão onipresente na Bíblia Hebraica que podemos encontrar esse princípio em ação mesmo nas primeiras páginas dessa obra, no próprio início do livro de Gênesis!
Contudo, muito provavelmente você nunca percebeu porque esse subtexto está relativamente cifrado nessa parte inicial. Hoje você vai entender finalmente porque a narrativa do Gênesis tinha uma serpente falante!
Antes, entretanto, tire a seguinte ideia da sua cabeça: a serpente falante NÃO tem nada a ver com Satanás, diabo ou termos similares. Isso é uma interpretação muito posterior, de um contexto cristão. A figura de Satanás tal como o cristianismo apregoa NÃO existe na Bíblia Hebraica. (O máximo que aparece nesta é o Satan, mas esse é um anjo obediente a Deus como quaisquer outros, exceto que ele faz um “trabalho sujo que alguém tem de fazer”: o de acusar os outros)
Agora que você já entendeu isso, preste atenção na imagem abaixo. Consegue reconhecer?
Trata-se da parte superior e mais interna do sarcófago antropóide que continha a múmia do Faraó Tutankhamon, que reinou o Egito por volta de 1336 a 1327 antes da era comum.
Agora olhe a imagem de novo e veja se reconhece o que está na cabeça dessa representação do Faraó em forma de sarcófago?
Sim, uma serpente!
Também a vemos na Máscara da múmia desse mesmo Faraó:
Esse tipo de artefato representando uma serpente em símbolos da monarquia egípcia é chamado de “Uraeus” (plural: Uraei ou Uraeuses). Trata-se de uma cobra egípcia simbolizando nada mais nada menos que soberania, realeza, divindade e autoridade divina no Egito Antigo!
Não à toa também encontramos o mesmo símbolo no Trono do próprio Faraó:
E como um apetrecho que o Faraó usava na sua testa:
Mais especificamente, a serpente em questão retrata a deusa Wadjet, matrona do Baixo Egito, que, após a unificação do Baixo Egito e do Alto Egito, tornou-se a deusa matrona de todo o Egito. Essa deusa era representada como uma mulher com cabeça de serpente ou como uma serpente, no caso uma cobra egípcia venenosa.
Agora você pode reler a narrativa de Gênesis 3 com outros olhos. A serpente fala especificamente com a mulher, Eva. A serpente fala, o que dá a entender que ela possui poderes especiais, e o texto a chama de “animal mais astuto entre os demais criados”. A serpente afirma que, se os humanos comessem do fruto proibido, “seriam como Deus”. Esse último ponto é muito importante porque mais para frente na Torá, no livro de Êxodo o Faraó da época é representado como se colocando no lugar de Deus para decidir sobre o que ocorre no Egito e com seus escravos hebreus — desobedecendo frontalmente ordens diretas do Criador do Universo.
Fazendo uma análise da intertextualidade envolvida no texto da Torá como um todo (primeiros 5 livros da Bíblia: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio), percebemos que: 1) o Egito é retratado como tendo um governo imperial opressivo sob as mãos dos Faraós (com exceções); 2) os egípcios consideram impuro/tabu algumas coisas que os hebreus consideram puro, e vice-versa; 3) o Egito é associado com cobras; 4) o termo em hebraico para “serpente” em hebraico é “nachash”, que também significa uma forma de “divinação” ou “feitiçaria”; 5) em certa ocasião Moisés (sob direção divina) faz uma espécie de amuleto representando uma serpente para curar aqueles que foram atacados por uma infestação de cobras venenosas no acampamento israelita.
Vamos comentar brevemente cada um desses pontos.
Se você acompanhar o texto do Gênesis depois do incidente com a cobra, o Egito é primeiro mencionado como o nome de uma pessoa, um dos filhos de Cam, que era filho de Noé. Então tal como o povo de Israel leva o nome do seu ancestral Israel (Jacó), o povo do Egito também leva o nome de seu ancestral.
“E os filhos de Cão são: Cuxe, Mizraim [Egito], Pute e Canaã.” (Gênesis 10:6)
A próxima menção, dessa vez referindo ao Egito (Mizraim, em hebraico) como nome de um local com seu povo associado, envolve Abraão tendo que ir para o Egito mesmo temeroso de ser assassinado ali e ter sua esposa roubada a mando do Faraó:
“E aconteceu que, chegando ele [Abraão] para entrar no Egito, disse a Sarai, sua mulher: Ora, bem sei que és mulher formosa à vista;
E será que, quando os egípcios te virem, dirão: Esta é sua mulher. E matar-me-ão a mim, e a ti te guardarão em vida.
Dize, peço-te, que és minha irmã, para que me vá bem por tua causa, e que viva a minha alma por amor de ti.
E aconteceu que, entrando Abrão no Egito, viram os egípcios a mulher, que era mui formosa.
E viram-na os príncipes de Faraó, e gabaram-na diante de Faraó; e foi a mulher tomada para a casa de Faraó.” (Gênesis 12:11–15)
No fim tudo da certa, os envolvidos saem ilesos mas… o subtexto implícito é que o Egito é perigoso por conta de líderes inescrupulosos, agindo como se fossem “deuses”. (Comparar com Gênesis 6:1–3 que fala dos bnei Elohim, “Filhos dos Deuses” ou “Filhos dos Poderosos”, raptarem as mulheres que desejavam, o que acabou levando ao dilúvio)
Mais tarde, na narrativa de José no Egito (um dos filhos de Jacó), vemos um caso excepcional de um faraó que tratou bem a família de Abraão, chegando a colocar José no governo de todo Egito. Mas mesmo ele pode decidir as coisas arbitrariamente (veja a história do aprisionamento do seu copeiro e do seu padeiro em Gênesis 40).
Não preciso dizer que o Faraó que se segue a este escraviza os hebreus, o que levará aos acontecimentos do livro do Êxodo. Então todo o período de escravidão judaica sob governo egípcio aponta o poder arbitrário exercido pelos Faraós.
Desse ponto de vista, as regras da Torá podem ser vistas como uma contra-Constituição, que visa um tipo de sociedade na qual tais abusos não ocorram ou sejam minimizados (havendo evidência arqueológica e sociohistórica robusta para tal ethos anti-hierárquico na origem de Israel).
A Torá ordena que o estrangeiro residente na comunidade israelita deve ser protegido em seus direitos, não devendo ser tratado injustamente, e isso é repetido diversas vezes (segundo Rabi Elizer no Talmude, alguns sábios consideravam que era repetido 36 vezes e outros, 46 vezes; Bava Metzia 59b). Mais que isso o estrangeiro deve ser amado porque Deus o ama e porque os próprios israelitas foram estrangeiros em terra alheia:
“E quando o estrangeiro peregrinar convosco na vossa terra, não o oprimireis. Como um natural entre vós será o estrangeiro que peregrina convosco; amá-lo-ás como a ti mesmo, pois estrangeiros fostes na terra do Egito. Eu sou o Senhor vosso Deus.” (Levítico 19:33,34)
“Pois o SENHOR vosso Deus é o Deus dos deuses, e o Senhor dos senhores, o Deus grande, poderoso e terrível, que não faz acepção de pessoas, nem aceita recompensas; Que faz justiça ao órfão e à viúva, e ama o estrangeiro, dando-lhe pão e roupa. Por isso amareis o estrangeiro, pois fostes estrangeiros na terra do Egito.” (Deuteronômio 10:17–19)
Isso se estende mesmo aos egípcios!
“Não abominarás o edomeu, pois é teu irmão; nem abominarás [tovaev] o egípcio, pois estrangeiro foste na sua terra.” (Deuteronômio 23:7)
Voltando agora para o ciclo narrativo de José, podemos entrar no ponto 2: é dito ali que os egípcios consideravam os pastores de ovelhas uma “abominação”, isto é, uma “toevah”, um termo que já expliquei nesse blog na minha série sobre “Homossexualidade e Bíblia Hebraica”, mais especificamente no post [63]. “Toevah” diz respeito a violações de regras rituais, e pode ser traduzido como “tabu”.
“E serviram-lhe [a José] à parte, e a eles [irmãos de José] também à parte, e aos egípcios, que comiam com ele, à parte; porque os egípcios não podem comer pão com os hebreus, porquanto é abominação [toevah] para os egípcios.” (Gênesis 43:32)
Lembre lá em cima que o egípcio não deveria ser “abominado” pelos israelitas? O termo usado também era toevah. Citando novamente:
“Não abominarás o edomeu, pois é teu irmão; nem abominarás [tovaev] o egípcio, pois estrangeiro foste na sua terra.” (Deuteronômio 23:7)
E agora voltando à questão dos egípcios verem certos aspectos alimentares israelitas como ‘tabus’:
“Depois disse José a seus irmãos, e à casa de seu pai: […] Quando, pois, acontecer que Faraó vos chamar, e disser: Qual é o vosso negócio?
Então direis: Teus servos foram homens de gado desde a nossa mocidade até agora, tanto nós como os nossos pais; para que habiteis na terra de Gósen, porque todo o pastor de ovelhas é abominação [toavat] aos egípcios.” (Gênesis 46:31–34)
Isso sugere que, para a narrativa do livro de Gênesis, os egípcios entendiam as ovelhas e cordeiros como deuses ou entes sagrados e por isso “abominavam” (isto é, tornavam tabu) aqueles que se alimentavam delas e, por extensão, os pastores de ovelhas.
Não nos importa aqui estabelecer se isso é histórico ou não. Mas seria esse entendimento que leva à primeira oferenda animal exigida por Deus ao povo judeu no livro de Êxodo ser um cordeiro, o cordeiro para o Pessach (Páscoa Judaica). Nesse dia o sangue desses cordeiros foi aspergido nas portas das casas judaicas, fazendo que “o anjo da morte” passasse por elas sem trazer morte aos seus primogênitos. Sacrificar o carneiro para comê-lo seria uma maneira de acabar com o possível comprometimento dos hebreus com deuses egípcios, abrindo o caminho para ter um comprometimento exclusivo com YHWH (nome do Deus de Israel).
Por outro lado, a serpente foi considerado um animal impuro na lista de animais impuros de Levítico 11. Justificativa? Todo animal que se arrasta no chão é ‘abominação’ (nesse caso, usando o termo aparentado “shequets”), não devendo ser comido porque o Eterno libertou o povo de Israel de sua escravidão no Egito:
“Não vos façais abomináveis, por nenhum réptil que se arrasta, nem neles vos contamineis, para não serdes imundos por eles; Porque eu sou o Senhor vosso Deus; portanto vós vos santificareis, e sereis santos, porque eu sou santo; e não vos contaminareis com nenhum réptil que se arrasta sobre a terra; Porque eu sou o Senhor, que vos fiz subir da terra do Egito, para que eu seja vosso Deus, e para que sejais santos; porque eu sou santo.” (Levítico 11:43–45)
Isso nos leva ao terceiro ponto, o Egito é associado com cobras na narrativa do Êxodo. Quando decidiu por enviar Moisés, o Deus de Israel concede a ele e Arão o poder de transformar suas varas numa serpente. E quando isso é de fato feito na presença do Faraó, os sábios e magos de Faraó eram capazes de fazer o mesmo, mas a cobra criada pelo Eterno devora as cobras do Faraó! Enquanto aqui não se usa para as serpentes o termo ‘nachash’, mas o termo ‘tanim’, que designa mais apropriadamente uma espécie de ‘dragão’, quando essa capacidade foi dada a Moisés em Êxodo 4:3 o termo usado é ‘nachash’.
Daí a narrativa do Gênesis conter uma informação aparentemente trivial, mas significativa nesse contraste:
“Ora, a serpente era mais astuta que todas as alimárias do campo que o SENHOR Deus tinha feito” (Gênesis 3:1)
Parece redundante dizer que a serpente fosse criada por YHWH o Deus de Israel, dado que já havia sido afirmado antes que todos os animais foram criados por YHWH. Mas dado que haviam crenças egípcias envolvendo uma serpente (vista positivamente) chamada Wadjet como deusa que simbolizava a autoridade do Faraó e outra serpente (vista negativamente) chamada Apep como um deus do caos que se opunha ao Maat (o princípio normativo da ordem entre os egípcios) em luta contínua com o deus Rá, entre outras divindades representadas como serpentes, tornava-se importante destacar que todas as serpentes foram criadas pelo Deus de Israel, que por isso tem poder sobre todas elas.
Daí também a relevância da narrativa do Gênesis tentar dar uma explicação para as serpentes terem de se arrastar pelo chão (ao invés de voarem). Também foi o Deus de Israel que decretou isso sobre as serpentes:
“Então o Senhor Deus disse à serpente: Porquanto fizeste isto, maldita serás mais que toda a fera, e mais que todos os animais do campo; sobre o teu ventre andarás, e pó comerás todos os dias da tua vida.” (Gênesis 3:14)
Indo para o ponto 4, cabe destacar que o idioma hebraico é baseado primordialmente em verbos, sendo os substantivos derivados dos verbos. Então ‘nachash’ (נָּחָשׁ֙), o substantivo para ‘serpente’, é derivado do verbo para ‘fazer divinação’ ou ‘fazer agouros’. Enquanto seja importante levar em conta os desenvolvimentos halachicos/jurisprudenciais acerca da magia na Torá Oral (não é completamente proibida em termos de Lei judaica), o livro de Levítico traz uma proibição ao ato de “nachashu” ּ(נַחֲשׁ֖וּ):
“não agourareis [tenachashu]” (Levítico 19:26)
“Entre ti não se achará quem faça passar pelo fogo a seu filho ou a sua filha, nem adivinhador, nem prognosticador, nem agoureiro [umenachesh], […]. Pois todo aquele que faz tal coisa é abominação [toevah] ao Senhor” (Deuteronômio 18:10–12)
Como esse verbo também aparece no ciclo narrativo de José (veja Gênesis 44: 5 e 44:15), fica claro que tal terminologia de ‘adivinhar’ ou ‘agourar’ (‘serpentear’, para conseguirmos ver a conexão entre o verbo e o substantivo) era conectada ao Egito. E segundo a evidência arqueológica, o culto à serpente ocorre em sítios caananitas pré-israelitas, acrescentando essa conexão entre serpentes e alguma forma de idolatria proibida para os judeus por grupos ligados ao sistema egípcio de governo sobre a terra de Canaã.
Por fim, o ponto 5: em certa ocasião Moisés faz uma serpente de bronze.
“Então o Senhor mandou entre o povo serpentes ardentes, que picaram o povo; e morreu muita gente em Israel.
Por isso o povo veio a Moisés, e disse: Havemos pecado, porquanto temos falado contra o Senhor e contra ti; ora ao Senhor que tire de nós estas serpentes. Então Moisés orou pelo povo.
E disse o Senhor a Moisés: Faze-te uma serpente ardente, e põe-na sobre uma haste; e será que viverá todo o que, tendo sido picado, olhar para ela.
E Moisés fez uma serpente de metal, e pô-la sobre uma haste; e sucedia que, picando alguma serpente a alguém, quando esse olhava para a serpente de metal, vivia.” (Números 21:6–9)
Aqui o antídoto para o veneno da serpente estava numa espécie de amuleto de serpente, o qual, entretanto, não deveria ser cultuado, enquanto os israelitas tenham feito isso, como indicado em 2Reis 18:4 (sem esclarecer quanto de fato essa prática começou, pois aqui se indica o seu término pelo rei Ezequias). Assim, essa narrativa da serpente de bronze tenta mostrar uma origem não idólatra para esse que foi um objeto de idolatria…
Mas isso também mostra que nem mesmo as serpentes são invariavelmente vistas negativamente na Bíblia Hebraica. Afinal, também elas são criação divina! E a serpente era mesmo o símbolo de uma das tribos de Israel, a tribo de Dã (Gênesis 49:16–18).
Portanto, com base em todas essas considerações, fica claro porque a serpente aparece no Jardim do Éden. Trata-se de uma condenação ao mau impulso que leva o ser humano a querer ser ‘como deus’ e a mandar no mundo conforme seu arbítrio desmedido (sendo que na própria discussão tradicional judaica já se discutia a ideia da fala da serpente no Éden ser uma metáfora para nossa capacidade imaginativa distorcida). Esse impulso é manifestado em sua maior proporção pelo Faraó egípcio da época do Êxodo, e um dos símbolos da autoridade faraônica era a serpente. “A serpente faz a cabeça do Faraó”, considerando que (o símbolo d)a serpente representava a suposta autoridade divina do Faraó e era colocado em sua testa.
Por fim, isso não significa que o Egito seja totalmente condenado aos olhos da Bíblia Hebraica. Para dar alguns exemplos: Como vimos, os israelitas já tiveram um lugar de destaque entre os egípcios no ciclo narrativo de José. O próprio Moisés foi criado em meio a Corte do Faraó. Há uma seção do Livro de Provérbios (22:17 a 23:12) que parece fazer referência a um texto de sabedoria egípcia. E ao Egito é prometido que, um dia, também será chamado por Deus de “meu povo”, segundo o Profeta Isaías:
“Naquele dia Israel será o terceiro com os egípcios e os assírios, uma bênção no meio da terra. Porque o Senhor dos Exércitos os abençoará, dizendo: Bendito seja o Egito, meu povo, e a Assíria, obra de minhas mãos, e Israel, minha herança.” (Isaías 19:24,25)
Lista com TODOS os posts do blog (links)
Post Anterior [112] Explicando a Sequência Judaica dos Livros da Bíblia Hebraica
Próximo Post [114] Por que tinha um fruto proibido no Jardim do Éden?