[71] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 18- Ethos Igualitário do Antigo Israel e sua Consequência Sexual

A Estrela da Redenção
5 min readNov 19, 2020

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No post [68] comentei que uma razão para a proibição existente no livro de Levítico do sexo anal entre 2 homens (que não proíbe nem relações lésbicas nem relações homoeróticas masculinas não penetrativas) reside no contexto hierárquico e de humilhação social em que esta prática sexual específica era vivenciada em diversas culturas do mundo antigo.

Isso pode chocar o leitor: atualmente é comum entendermos a questão da inclusão dos homossexuais e a aceitação das relações homoafetivas como uma questão de igualdade; mas eu pareço estar sugerindo que, naquele tempo, a questão pela igualdade motivou uma restrição a essa vivência sexual!

Bem, de fato, eu estou sugerindo isso. Como eu disse no post [61], a Bíblia NÃO fala da homossexualidade atual, mas sim de como ela era praticada e concebida no mundo antigo em geral e na cultura judaica em particular. E naquele contexto cultural mais amplo, o sexo anal entre 2 homens era associado, em primeiro lugar, com ritos sexuais idólatras (vide posts [63]-[64]-[65]-[66]-[67]) e, em segundo lugar, com hierarquia social envolvendo um dominante social (o ativo sexual) e um subordinado social (o passivo sexual).

Então, NAQUELE CONTEXTO, restringir a questão do sexo anal entre 2 homens poderia ser uma maneira de desafiar a desigualdade, MESMO QUE NO NOSSO CONTEXTO não seja mais o caso.

Note:

  1. se certa prática sexual, no caso o sexo anal entre 2 homens, era um marcador de desigualdade entre esses homens, porque, por exemplo, o ativo seria o dono de um escravo e o passivo seria este escravo;
  2. se a cultura em questão visava diminuir hierarquias sociais (em especial aquelas dentro do sexo masculino) por vê-las negativamente;
  3. então, a cultura em questão restringiria aquela prática sexual que funcionava como marcador de uma hierarquia social entre pessoas do sexo masculino, no propósito de aumentar a igualdade entre as pessoas do sexo masculino.

Um esclarecimento importante é que isso não aconteceu da noite pro dia: esse aspecto anti-hierárquico (como veremos abaixo) surgiu bem antes da proibição de Levítico (cuja datação discuti no post [65]). Então não seria correto dizer que tal aspecto implicaria no estabelecimento de tal regra. Mas esse aspecto acabou por influenciar a interpretação subsequente dessa regra (e quiçá a própria regra), especialmente depois do contato dos antigos israelitas com a cultura helenista.

Nós temos várias evidências de que o antigo Israel tinha um ethos igualitário, o qual influenciou decisivamente tanto a Bíblia Hebraica como a tradição rabínica.

A cultura judaica HÁ TRÊS MILÊNIOS é uma cultura com um ethos fortemente igualitário, em termos econômicos e sociais, especialmente entre pessoas do sexo masculino. Isso não significa que necessariamente as pessoas e famílias sempre tinham condições de vida aproximadas, mas que o ethos cultural favorecia e incentivava uma igualdade maior.

Além das evidências textuais encontradas na própria Bíblia Hebraica (discutidas nesta série nos posts [68]-[69] e neste blog em posts como [18]-[19]-[20]-[31]-[32]-[45]), nós temos evidências arqueológicas para a existência desse ethos igualitário no antigo Israel.

No livro “Israel’s Ethnogenesis: Settlement, Interaction, Expansion and Resistance” (2006), o arqueólogo Avraham Faust mostra que os sítios arqueológicos que correspondem aos assentamentos israelitas mais antigos são profundamente diferentes dos sítios arqueológicos bem próximos mas correspondentes aos assentamentos caananitas ou filisteus.

Os assentamentos israelitas exibem uma cultura material mais igualitária do que a de seus vizinhos caananitas ou filisteus durante as Idade do Ferro I e Idade do Ferro II, na qual ocorreu a etnogênese do povo hebreu/judeu!

O período em questão vai dos séculos 13 ao 6 antes da era comum (1200–586 AEC), correspondendo ao período pré-monárquico (Idade do Ferro I) e ao período monárquico pré-exílico (Idade do Ferro 2), ou seja, aproximadamente de 3.200 a 2.600 anos atrás!

A evidência arqueológica coletada e analisada por Faust diz respeito ao fato de que, mesmo morando bem próximos entre si, a cultura israelita começou a se diferenciar da cultura caananita e filistéia por meio de certos marcadores de cultura material.

Os assentamentos israelitas ao longo da Idade do Ferro (I e II) apresentam as seguintes características distintivas:

  1. Ausência de ossos de porco;
  2. Ausência de tumbas, indicando sepultamentos simples e sem adornos [Idade do Ferro I];
  3. Cerâmica utilitária e não decorada;
  4. Ausência de cerâmica importada;
  5. Ausência de templos;
  6. Ausência de inscrições monumentais da realeza (mesmo após o estabelecimento da monarquia);
  7. Casa de quatro quartos, com acesso fácil entre os quartos e faltando um arranjo hierárquico óbvio
Casa de Quatro Quartos, imagem cortesia de Israel Finkelstein/Tel Aviv University ilustrando o artigo “Was Biblical Israel an Egalitarian Society?” (2019) da Biblical Archaeology Society.

Faust alerta várias vezes o leitor que a existência de um ethos igualitário na cultura não significa que necessariamente isso ocorre na prática e em seu livro “The Archaeology of Israelite Society in Iron Age II”, de 2012, ele mostra como a estratificação e a hierarquia aumentaram durante os reinos pré-exílicos a despeito do ethos igualitário. Mas isso torna mais claro inclusive a própria crítica feita pelos profetas clássicos às injustiças sociais na fase final das monarquias e como eles retrabalham o ethos igualitário que já existia naquele contexto cultural!

A diferenciação étnica dos antigos israelitas em relação aos caananitas e filisteus, portanto, teve um aspecto social crucial. Esses povos vizinhos eram hierárquicos, exibindo vários marcadores de distinções de classe e de poder. A cultura israelita, em contraste, abdica de tais marcadores, exibindo uma simplicidade maior. Esse ethos conseguiu sobreviver mesmo à formação do Estado.

Assim, vemos que a etnogênese da cultura judaica que encontramos na Bíblia Hebraica está atrelada a um ethos anti-hierárquico onde a subordinação social é vista como indesejável e como algo a ser eliminado ou pelo menos minorado. Tal ethos depois vai afetar mesmo questões de sexualidade se estas sinalizassem tais contextos ilegítimos de hierarquização e/ou associados a povos vistos como hierárquicos.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.

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