[60] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 7- Quais atos lésbicos? (na tradição rabínica medieval)

A Estrela da Redenção
4 min readOct 9, 2020

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Como vimos no post anterior, uma proibição explícita sobre a lesbianidade surgiu na tradição judaica durante a idade média, pela influência decisiva do Rambam, um dos maiores codificadores da Lei Judaica. Proibição esta não contida na Bíblia Hebraica (como vimos no post [55]) nem no Talmude (como vimos no post [59]). Expliquei como Rambam chegou na conclusão de que a Lei Judaica proibia atos homossexuais femininos.

Mas quais atos lésbicos estão em jogo nessa proibição explicitada na tradição rabínica medieval? Pois vimos nos posts [56]-[57] que, no caso homossexual masculino, a tradição judaica estabeleceu duas proibições: o ato sexual proibido (do sexo anal entre dois homens) e a de não ‘não se aproximar [de cometer o ato proibido]’ (outras formas de intimidade homossexual masculina que poderiam levar ao sexo anal). Então no caso lésbico, haveria também uma tal divisão entre ato sexual proibido e não se aproximar de cometê-lo?

A resposta curta é: não. Mesmo que a tradição rabínica medieval tenha estabelecido uma proibição para o caso lésbico, existe a consciência de que tal ato NÃO está na categoria de ‘atos sexuais proibidos’ do livro de Levítico. Como é apenas para essa lista que a proibição acessória de ‘não se aproximar [de cometer o ato proibido]’ se aplica, então tal proibição inexiste para o caso lésbico.

Então, chegamos numa primeira conclusão parcial: não existe um tratamento unificado para a categoria da homossexualidade na tradição judaica. De fato, não existe uma categoria paralela à de ‘homossexualidade’ como a entendemos hoje. Ainda mais forte: nem mesmo algo paralelo a ‘atos homossexuais’. Repito: NÃO EXISTE UMA CATEGORIA ÚNICA ALI.

Os sábios judaicos não concebiam esse assunto em termos de ‘relações sexuais com alguém do mesmo sexo’. Uma coisa era o ato entre homens, outra o ato entre mulheres. No caso dos homens, havia uma “bi’ah” (a penetração sexual) chamada de “mishk’vei ishah” (no Levítico) ou “mishkav zachor (no Talmude) que se trata do ‘sexo anal’ (penetração atípica). No caso das mulheres, não há uma ‘“bi’ah”, mas apenas “nashim hamesollelot”.

O que seria “nashim hamesollelot”? Nós encontramos diferentes definições para ‘mesollelot’ em rabinos da Idade Média, os rishonim, que viveram entre 1.000 e 1.500 da nossa era.

A definição básica é dada por Rashi (Comentário de Rashi sobre Yevamot 76a), que é a da imitação do intercurso entre um homem e uma mulher. Esse conceito é aplicável tanto ao caso lésbico, no qual duas mulheres esfregam suas genitálias uma na outra, como ao caso de uma mulher com um menino (onde não haveria a possibilidade real da penetração, mas no máximo sua ‘imitação’).

Outra definição é dada pelos Tosafistas: o Rivan explica isso como a tentativa de duas mulheres de transferir o sêmen de seus esposos da vagina de uma para a vagina da outra! (Tosafta sobre Yevamot 76a)

Então, como se pode observar, o ‘nashim hamesollelot’ proibido na tradição rabínica medieval diz respeito a certos atos lésbicos imitativos da penetração heterossexual, mas não se aplica a outros atos lésbicos. Então, na verdade, mesmo a proibição rabínica (não bíblica) da homossexualidade feminina não diz respeito a todos os atos lésbicos, mas a um subconjunto destes.

[Para outros detalhes, veja a compilação de fontes em “Sources on Jewish Law as it applies to Lesbianism Frequently Asked Questions about Lesbianism and Halakhah (Jewish Law)” e o capítulo pertinente do livro “Wrestling with God and Men: Homosexuality in the Jewish Tradition” do Rabino (Ortodoxo) Steven Greenberg.]

Destaco isso porque sempre temos a tendência de ler expressões tais como ‘atos lésbicos’ como se referindo a todo e qualquer ato de intimidade sexual entre duas mulheres, e similarmente fazemos isso ao caso homossexual masculino.

Mas esse tipo de uso indiscriminadamente extensivo desse tipo de termo, enquanto comum em nossa cultura atual, não corresponde ao uso nem da Bíblia Hebraica nem do Talmude (os Chazal) nem dos Comentaristas Medievais (os Rishonim).

“Still Life — Vase with Fifteen Sunflowers” [Ainda Vida — Vaso com Quinze Girassóis], Vincent Van Gogh, 1888.

Ou seja, tratar homossexualidade ou atos homossexuais como termos de extensão indeterminada não era feito na cultura judaica seja bíblica, clássica ou medieval.

E esse contexto cultural tem consequências interessantes para o panorama geral desse assunto, como veremos nos próximos posts.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.

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