[69] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 16- O Real Pecado de Sodoma: Injustiça Econômica
É disseminada no mundo cristão uma visão que trata Sodoma e Gomorra como se fossem as cidades mais LGBT do antigo Oriente Médio, e que este fora o motivo de sua destruição decretada por Deus como narrada no livro do Gênesis. O Mar Morto foi o que teria sobrado dessa primeira Tel Aviv (caso o leitor não saiba, Tel Aviv, uma cidade israelense, é a cidade mais LGBT-friendly do Oriente Médio atual).
Mas essa visão é simplesmente uma das maiores mentiras já propagadas sobre o texto bíblico, uma deturpação do sentido original dessa narrativa. O pior é que fundamentalistas adoram dizer coisas como ‘essa interpretação de Sodoma não ser sobre gays é invenção moderna, é liberalismo teológico’, quando na verdade Sodoma não ser sobre gays é simplesmente a interpretação mais tradicional que existe HÁ TRÊS MILÊNIOS!
Num dos meus primeiros posts deste blog, “[7] Sodoma e Gomorra: até hoje você entendeu errado — mais sobre graça do que punição”, comentei que os pecados de Sodoma eram pecados públicos bem graves, de violência e crueldade. O profeta Ezequiel, há mais de 2.500 anos atrás, dentro da própria Bíblia Hebraica resume bem:
“Eis que esta foi a iniqüidade de Sodoma, tua irmã: Soberba, fartura de pão, e abundância de ociosidade teve ela e suas filhas; mas nunca fortaleceu a mão do pobre e do necessitado.” (Ezequiel 16:49)
E em outro momento, comenta das iniquidades de Jerusalém fazendo alusão às de Sodoma:
“Ao povo da terra oprimem gravemente, e andam roubando, e fazendo violência ao pobre e necessitado, e ao estrangeiro oprimem sem razão.” (Ezequiel 22:29; leia até o verso 31 para entender a conexão com Sodoma)
Ou seja, o pecado de Sodoma é a injustiça econômica. Uma cidade de ricos que maltratava os fracos, os pobres, os estrangeiros necessitados de hospitalidade e assim por diante.
Os rabinos do Talmude e do Midrash, há quase 2.000 anos atrás, colocaram por escrito as tradições e interpretações orais que existiam já antes disso sobre os detalhes das iniquidades pelas quais Sodoma e Gomorra mereceram sua destruição. (Interpretações essas que datam ao tempo de Jesus e ajudam a explicar as menções que Jesus faz sobre Sodoma no Novo Testamento)
“Disse mais o Senhor: Porquanto o clamor de Sodoma e Gomorra se tem multiplicado, e porquanto o seu pecado se tem agravado muito,
Descerei agora, e verei se com efeito têm praticado segundo o seu clamor, que é vindo até mim; e se não, sabê-lo-ei.” (Gênesis 18:20,21)
Rashi ao comentar este versículo nos lembra que os sábios do Talmude interpretaram esse clamor que subiu até os Céus como o grito de uma certa menina a quem os habitantes de Sodoma (os verdadeiros “Sodomitas”) mataram de forma horrível porque deu comida a um homem pobre.
A menina escondia pão em sua jarra, quando ia buscar água, mas, quando ninguém estava olhando, dava este pão ao pobre. Quando isso foi descoberto, os habitantes de Sodoma a cobriram de mel e a colocaram em cima do muro da cidade. Com isso abelhas vieram e a devoraram viva. (Sanhedrin 109b)
A ideia aqui é que Sodoma e Gomorra eram cidades comandadas por ricos cujas leis visavam excluir os pobres por proibir toda forma de caridade e justiça distributiva (tzedaká).
Então os sábios afirmavam que Sodoma e Gomorra tinham leis como as seguintes (lista não exaustiva, tem mais além das que escolhi escrever aqui):
- Proibido dar comida a qualquer pessoa pobre;
- Apenas permitido dar a um pobre uma moeda com o nome do dono nela gravada para que o pobre, após pegasse alegremente as moedas, ninguém vendesse comida para ele, ele morresse de fome e assim todos pegassem sua moeda de volta;
- Proibido convidar um estrangeiro para sua casa, qualquer forma de hospitalidade era vedada.
- Qualquer estrangeiro que passasse por Sodoma seria maltratado e roubado.
- Se um homem batia em outro e o fazia sangrar, o juiz determinava que o ferido devia pagar ao agressor o valor de uma consulta médica por ter oferecido o serviço médico de coleta de sangue. (!)
Ou seja, leis cujo objetivo era institucionalizar a injustiça econômica e social. O contraste literário dentro do livro de Gênesis é feito com a hospitalidade de Abraão a 3 desconhecidos (que na verdade eram anjos) que antecede imediatamente a história de Sodoma, sendo que na transição entre ambas Deus afirma para si mesmo:
“E disse o Senhor: Ocultarei eu a Abraão o que faço,
Visto que Abraão certamente virá a ser uma grande e poderosa nação, e nele serão benditas todas as nações da terra?
Porque eu o tenho conhecido, e sei que ele há de ordenar a seus filhos e à sua casa depois dele, para que guardem o caminho do Senhor, para agir com justiça e juízo; para que o Senhor faça vir sobre Abraão o que acerca dele tem falado.” (Gênesis 18:17–19)
Notaram? “ele há de ordenar a seus filhos e à sua casa…. para que guardem o caminho do Senhor, para agir com justiça e juízo”. Essa dupla ‘justiça e juízo’ é mishpá e tzedaká/tzedek, justiça corretiva e justiça distributiva. Justamente aquilo que Sodoma violava. E no que consiste O CAMINHO DO DEUS DE ISRAEL.
Mishpá e tzedaká são basicamente o grande TEMA DA BÍBLIA HEBRAICA, discutido e rediscutido inúmeras vezes dentro dela. As leis da Torá que seriam dadas ao povo hebreu séculos depois, em franco contraste às de Sodoma, ordenam ajudar o pobre, o órfão, a viúva, o estrangeiro, e o fazem de forma precisa: por exemplo, havia o dízimo da colheita para o pobre, os frutos que caíssem no chão durante a colheita deviam ser deixados aos pobres, as dívidas eram perdoadas a cada 7 anos e aqueles que viraram escravos por dívidas também eram liberados, as terras vendidas voltavam aos seus donos originais a cada 50 anos, e assim por diante.
Um detalhe sutil na história de Sodoma também ilustra bem outro princípio judaico correlato. O castigo para o pecado entre homens é MAIOR que o castigo do pecado do homem contra Deus. Sim, é essa a ordem mesmo. O pecado feito contra outro ser humano é mais grave e deve ser mais punido que o pecado contra Deus. Na história em questão, isso estaria ligado ao fato de que foram quatro cidades as destruídas, não só duas, mas duas delas (Sodoma e Gomorra) receberam uma destruição mais rigorosa via enxofre ígneo. (Likutei Sichot vol. 35 p. 74, Rebbe de Lubavitch)
Agora que está provado por A+B que o pecado de Sodoma era a injustiça econômica, não a homossexualidade, de onde veio esse hoax de que Sodoma era uma cidade LGBT?
Eu falei no post anterior que os habitantes de Sodoma de fato ameaçam estuprar os visitantes recebidos por Ló e, assim, fazer sexo anal forçado com eles. Contudo, isso por si só não fala nada sobre atração homossexual.
Como vimos da explicação judaica de mais de 2 milênios sobre isso, tal intimidação era reflexo de costumes e leis que ordenavam maltratar os estrangeiros e proibia a hospitalidade. O estupro aqui é para humilhar e machucar os visitantes. Então, a intimidação que apela para ele é um sintoma do pecado de Sodoma, que é a injustiça econômica e a exclusão social obrigatórias por lei.
Na verdade a origem desse hoax vem de algumas interpretações heterodoxas, feitas pelos judeus helenizados Flávio Josefo e Filo de Alexandria, que davam um maior peso ao componente erótico no pecado de Sodoma, justamente por estarem imersos na cultura helenista de seu tempo e nisso terem se afastado da perspectiva judaica. (Lembrete: nunca cite Josefo ou Filo como autoridades em religião judaica, pois ambos são influentes pros cristãos, não pros judeus)
De início os Pais da Igreja no cristianismo nascente usaram a mesma interpretação ortodoxa dos rabinos do Talmude/Midrash, mas vários séculos depois a interpretação de que o pecado de Sodoma envolvesse homossexualidade acabou se desenvolvendo e ganhando predominância entre os cristãos, durante a Idade Média. E assim foram cunhados os infames termos ‘sodomia’ e ‘sodomita’.
Curiosamente o Talmude tem um termo para ‘sodomita’, middat Sedom, que significa conduta como a dos habitantes de Sodoma. Mas o sentido é completamente outro do que foi popularizado no contexto cristão.
Para a Lei Judaica, um sodomita é alguém que se recusa a ajudar um necessitado quando a generosidade não custará nada à pessoa (veja Greenberg, 2005, p. 71). Por exemplo, um proprietário de um imóvel vago e sem uso, que nega seu uso temporário por outro, é um SODOMITA! (Sim, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto luta contra sodomitas…) E essa regra judaica permitia que um Tribunal rabínico forçasse a pessoa a beneficiar outras quando isso nada lhe custasse (vide p. ex. Ketubot 103a).
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