[70] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 17- Homoerotismo em Contexto Afetivo na Bíblia?

A Estrela da Redenção
7 min readNov 14, 2020

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Como vimos no post [68], as 2 ou 3 referências narrativas ao sexo anal masculino entre 2 homens dentro da Bíblia envolvem um contexto de hierarquia de poder e humilhação social, onde a ameaça de um homem estuprar outro homem era usada para fins de intimidação.

Isso significa que as referências indiretas negativas da Bíblia Hebraica à homossexualidade NÃO se referem à homossexualidade num contexto afetivo, como o do mundo de hoje, e nem à homossexualidade enquanto categoria geral. Essas menções indiretas se referem:

  1. Ao ato sexual anal entre 2 homens num contexto de rituais de idolatria, nos trechos normativos/avaliativos que se referem ao prostituto cultual (que como expliquei no post [64] fornece o contexto imediato das únicas 2 referências explicitas a esse tema, as do livro de Levítico);
  2. Ao ato sexual anal entre 2 homens num contexto de ameaça de estupro, nos trechos narrativos abordados no post [68].

A rigor, TUDO que a Bíblia de fato condena na questão homossexual, quanto tomada literalmente, é o ato sexual anal entre 2 homens num contexto seja de idolatria seja de estupro/humilhação. A Bíblia no seu sentido literal não aborda os outros casos, e se estendemos o juízo negativo desses 2 casos para outros casos de homoerotismo masculino (ou para o homoerotismo feminino), isso somos NÓS quem o fizemos/fazemos, não a Bíblia.

Contudo, uma questão interessante emerge disso. Os trechos em questão se referem ao sexo anal. Esse aspecto hierárquico de subordinação e humilhação tem relação direta com o sexo anal, por um motivo óbvio: o sexo anal geralmente causa (ou pode causar) dor no passivo. Já outros atos homoeróticos não são associados com dor, e, assim, não são tão associáveis a um contexto de humilhação e subordinação como o sexo anal é.

Sendo assim, será que existiria alguma narrativa da Bíblia Hebraica na qual se sugira sutilmente uma relação homoerótica masculina que não passe por esse contexto de violência? De uma relação homoerótica vivida num contexto de afetividade mútua?

Alguns suspeitam que isso poderia ser visto na história da amizade entre Davi e Jônatas. Por exemplo, no dia em que Jônatas vê Davi pela primeira vez:

“E sucedeu que, acabando ele de falar com Saul, a alma de Jônatas se ligou com a alma de Davi; e Jônatas o amou, como à sua própria alma.
E Saul naquele dia o tomou, e não lhe permitiu que voltasse para casa de seu pai.
E Jônatas e Davi fizeram aliança; porque Jônatas o amava como à sua própria alma.
E Jônatas se despojou da capa que trazia sobre si, e a deu a Davi, como também as suas vestes, até a sua espada, e o seu arco, e o seu cinto.” (1 Samuel 18:1–4)

E quando da despedida entre eles porque o pai de Jônatas queria matar Davi:

“Então Jônatas deu as suas armas ao moço que trazia, e disse-lhe: Anda, e leva-as à cidade. E, indo-se o moço, levantou-se Davi do lado do sul, e lançou-se sobre o seu rosto em terra, e inclinou-se três vezes; e beijaram-se um ao outro, e choraram juntos, mas Davi chorou muito mais.” (1 Samuel 20:40,41)

E após a morte de Jônatas, Davi a lamentou dizendo:

“Angustiado estou por ti, meu irmão Jônatas; quão amabilíssimo me eras! Mais maravilhoso me era o teu amor do que o amor das mulheres.” (2 Samuel 1:26)

A interpretação mais tradicional dessa amizade é que seria isso, apenas uma amizade. Entretanto, não é possível descartar a possibilidade de estar sugerida uma afeição homoerótica entre Davi e Jônatas nas entrelinhas.

“David and Jonathan at the Stone Ezel” [Davi e Jônatas na Pedra Ezel], Edward Hicks, 1847.

Lembrando: aqui a questão não é se o Davi histórico era bissexual ou não, esse tipo de questão historiográfica é muito difícil de responder. Mas a real questão é se LITERARIAMENTE a amizade entre Davi e Jônatas pode ser entendida ou não como tendo um pano de fundo erótico ou romântico.

Alguns tradicionalistas e fundamentalistas vão dizer que é forçar a barra ler nessa amizade uma relação homoafetiva. Afinal, em Levítico não tem a proibição contra tais relações? Mas o leitor agora está munido de informação suficiente para perceber o erro desse argumento.

Mesmo se pudéssemos dizer que o livro de Samuel* pressupõe a proibição de Levítico (o que já mostrei não ser o caso, posts [65]-[66]), ainda assim a proibição de Levítico é contra o sexo anal entre 2 homens, “mishk’vei ishah”, mas deixa de fora outras expressões homoeróticas. (Revise posts [56]-[57])

Assim, é plenamente possível que, ao nível literal, o livro de Samuel retratasse sutilmente uma amizade homoerótica entre Davi e Jônatas que não envolvesse a proibição levítica de “mishk’vei ishah”, isto é, sem sexo anal entre eles. Mas talvez com outros tipos de estimulação sexual/erótica sem envolver penetração.

E isso não é nada estranho: apesar de hoje em dia associarmos sexo homossexual masculino como envolvendo necessariamente penetração anal, nem todos os homossexuais ou bissexuais masculinos de fato gostam de fazer penetração.

Para resumir: o principal motivo que os fundamentalistas e tradicionalistas têm para dizer que é impossível o livro de Samuel estar sugerindo que a amizade entre Davi e Jônatas tivesse um componente homoerótico é que o texto de Levítico proíbe isso totalmente. Contudo, agora que sabemos que o texto de Levítico se refere apenas ao sexo anal, então isso abre a possibilidade literária de que o autor de Samuel (ou a tradição oral em que ele se baseou) sugerisse tal componente romântico homoerótico mas sem sugerir a prática de penetração anal.

A narrativa de Samuel de fato sugere que havia um afeto homoerótico entre Davi e Jônatas? Não é possível falar isso conclusivamente. Pode ser que sim. Pode ser que não. Mas eu recomendo consultar a discussão feita pelo Rabino ortodoxo Steven Greenberg no 5º capítulo de seu livro “Wrestling with God and Men: Homosexuality in the Jewish Tradition” (2004) para uma discussão das evidências textuais em favor dessa interpretação.

De fato, existem pistas de tal sugestão homoafetiva. O arco da amizade entre Davi e Jônatas começa com um ‘amor à primeira vista’ de Jônatas por Davi e se encerra com a desolação de Davi com a morte de Jônatas, cujo amor, nas palavras de Davi, era superior ao amor com as mulheres!

Davi e Jônatas, ilustração em manuscrito por volta do ano 1300.

Um indício intrigante discutido por R. Greenberg está em uma frase dita por Saul ao seu filho Jônatas:

“Então se acendeu a ira de Saul contra Jônatas, e disse-lhe: Filho da mulher perversa e rebelde; não sei eu que tens escolhido o filho de Jessé, para vergonha tua e para vergonha da nudez de tua mãe?” (1 Samuel 20:30)

O uso desse termo ‘nudez da tua mãe’ aqui é muito estranho. Como sabemos, esse tipo de expressão é usada no contexto de relações sexuais. O termo para ‘nudez’ aqui é ‘erva’, que é costumeiramente usado para relações sexuais ilícitas. E Saul usa esse termo num contexto de condenar a ‘escolha’ e ‘afeição’ de Jônatas por Davi (filho de Jessé), talvez dizendo algo como “você deveria estar atrás de ter filhos e de fazer para si um herdeiro para assegurar a dinastia da nossa família para sempre, ao invés de ficar correndo atrás desse outro garoto!”

Enquanto isso a narrativa em si nos compele a exaltar Jônatas por essa mesma escolha e afeição, já que a ascensão de Davi ao trono antes ocupado pelo pai de Jônatas é resultado direto desse amor ‘proibido’, proibido por Saul, mas aprovado por Deus!

Quanto ao caso homoafetivo feminino, não existe na Bíblia Hebraica nenhum paralelo tão forte como esse de Davi e Jônatas. O mais perto disso é a história de Rute e sua sogra Noemi, após a morte do marido de Rute que era filho de Noemi. Aqui não há indício textual de erotismo, mas o cuidado e devoção de Rute por Noemi (antes que Rute venha a casar novamente) é o mais próximo do que seria a vivência de um casal lésbico na Bíblia Hebraica.

“Então levantaram a sua voz, e tornaram a chorar; e Orfa beijou a sua sogra, porém Rute se apegou a ela.
Por isso disse Noemi: Eis que voltou tua cunhada ao seu povo e aos seus deuses; volta tu também após tua cunhada.
Disse, porém, Rute: Não me instes para que te abandone, e deixe de seguir-te; porque aonde quer que tu fores irei eu, e onde quer que pousares, ali pousarei eu; o teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus;
Onde quer que morreres morrerei eu, e ali serei sepultada. Faça-me assim o Senhor, e outro tanto, se outra coisa que não seja a morte me separar de ti.” (Rute 1:14–17)

O termo “ela se apegou” (דָּ בְ קָה) usado para Rute em relação a Noemi é o mesmo do Gênesis no trecho sobre a união entre homem e mulher:

“Portanto deixará o homem o seu pai e a sua mãe, e e ele apegar-se-á (וְ דָ בַ ק) à sua mulher, e serão ambos uma carne.” (Gênesis 2:24)

Como R. Greenberg comenta:

“A redescoberta de fragmentos de Davi e Jônatas, de Rute e Naomi para nossos propósitos não é afirmar que cada um desses pares bíblicos foram de namorados/namoradas [lovers]. Ao invés, é apresentar que o impulso erótico e o amor comprometido entre pessoas do mesmo sexo foram reconhecidos em nossa sagrada tradição.” (p. 105).

*1 e 2 Samuel são na verdade um livro só.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.